domingo, 17 de janeiro de 2010

ARQUITETA E HISTORIADORA RETRATA A CIDADE REBELDE DO RIO DE JANEIRO

A arquiteta e pesquisadora Jane Santucci está ultimando o livro Rio: uma cidade rebelde. Nele traça o quadro das rebeldias do Rio de Janeiro na virada do século 19 para o 20 -- quando a então capital do Brasil viveu a a Revolta do Vintém, ainda no Império, a primeira greve geral, a greve das carnes verdes e a Revolta da Vacina, estas entre 1902 e 1904.
O livro de Jane Santucci recorta um momento de uma história de explosões cariocas que começa bem mais cedo e vai até bem mais tarde. Na primeira delas, nos idos de 1821, a tropa e o povo obrigam Dom João VI a jurar a Constituição ainda nem escrita mas proclamada como objetivo pela Revolução do Porto. Há dezenas de outras, chegando até as da luta contra a ditadura, como o enterro de Edson Luís, a Sexta-feira Sangrenta e a Passeata dos 100 Mil -- três eventos que completam quatro décadas em 2008.

O período focado em Uma cidade rebelde, sem ser o único, é dos mais ricos dessa trajetória irrequieta. A arquiteta, também historiadora do Passeio Público, descreve uma capital onde os pobres começam a deixar os cortiços pelas favelas, e a capoeira é criminalizada, com seus mestres deportados para Fernando de Noronha. Abaixo, alguns trechos do livro. Neles o leitor achará as linhas paralelas, as convergentes e as divergentes em relação à metrópole de um século mais tarde.

''Nas ruas da cidade os grupos de capoeiras conhecidos também como maltas se enfrentavam na luta pelo controle informal de territórios. Entre 1850 e 1890, o centro da cidade foi dividido em territórios controlados pelas principais maltas: 'Nagoas' e 'Guaiamus', formadas a partir de várias falanges que dividiram as freguesias entre si. Sendo rivais, viviam em estado de guerra e arregimentavam até cem pessoas. As maltas comportavam escravos libertos e escravos ao ganho (aqueles que viviam nas ruas vendendo mercadorias ou oferecendo serviços e pagando uma parcela do que obtinham a seus senhores).''

''No inicio da Republica, o novo Código Penal transformou a capoeiragem em crime e começou a perseguição aos capoeiras que eram autuados como contraventores. A presença do capoeira na rua tornou-se uma ameaça à ordem pública e a luta compreendida como uma espécie de arma, o caráter coletivo da prática, uma forma de rebelião. As maltas resistiam protegidas em seus guetos que eram os cortiços, espalhados pelo centro, locais onde a policia não entrava.''

''Intrépidos e ousados, os capoeiras eram temidos e ao mesmo tempo exerciam fascínio nos meninos pobres que sonhavam pertencer ao grupo. A iniciação acontecia em torno dos 10 anos, quando o aprendiz acompanhava as maltas portando as armas. Depois passavam por um treinamento até os 14 anos, momento em que era considerado apto para o combate e dava-se inicio a curta carreira, pois muitos jovens morriam antes de chegar aos 22 anos, na luta contra os adversários ou com a própria policia.''

''Em cortiços e estalagens moravam cerca de 25% da população carioca, distribuída entre as freguesias do centro. Diante da proliferação de moradias insalubres no centro, nas quais a peste mais vitimava e o crime se alastrava, médicos e engenheiros higienistas, apoiados pela opinião pública, deram inicio a uma campanha pela erradicação dos cortiços da região. O primeiro grande cortiço a cair foi o Cabeça de Porco no mandato do prefeito Barata Ribeiro. O espetáculo da demolição foi um acontecimento que repercutiu por toda a área central atraindo uma multidão. Com grande aparato, o prefeito apresentou-se para a demolição acompanhado de soldados do Primeiro Batalhão de Infantaria, Corpo de Bombeiros e dezenas de operários para colocar abaixo o precário conjunto de moradias. A estalagem estava situada logo atrás de uma pedreira do Morro da Favella,( hoje da Providencia), onde uma das proprietárias do cortiço possuía vários lotes. De imediato se estabeleceram negócios entre a usurária e os despejados dando inicio a construção dos barracos na encosta.'' ''Enquanto as atenções estavam voltadas para os cortiços, a favela crescia silenciosamente e à medida que os cortiços iam desaparecendo com as demolições, a favela ia se firmando e aumentava seus domínios para outros morros que circundavam o centro.''

''Em 1900 uma matéria no Jornal do Brasil denuncia que o morro da Favella é “infestado de vagabundos e criminosos que são o sobressalto das famílias”. O Jornal Gazeta de Noticias de 21 de maio de 1903, dizia: “ O morro da Providencia sempre foi um lugar célebre de capoeiragem e assassinatos. Outrora no lugar onde hoje só existe um cruzeiro, mandado fazer pela Santa Casa bem no pico da montanha, é que davam lições de capoeiragem. Chamavam o China Seco e a policia monárquica nunca pode acabar com esse centro de horror. Depois da guerra dos Canudos, os mais ousados facínoras voltaram a habitar o píncaro do morro, denominando-o de Favella, porque no reduto não há policia que não seja derrotada”.

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