sexta-feira, 25 de agosto de 2006

Hobbes e o pensamento político.

Hobbes quis fundar a sua filosofia política sobre uma construção racional da sociedade, que permitisse explicar o poder absoluto dos soberanos. Mas as suas teses, publicadas ao longo dos anos, e apresentadas na sua forma definitiva no Leviatã, de 1651, não foram bem aceites, nem por aqueles que, com Jaime I, o primeiro rei Stuart de Inglaterra, defendiam que «o que diz respeito ao mistério do poder real não devia ser debatido», nem pelo clero anglicano, que já em 1606 tinha condenado aqueles que defendiam «que os homens erravam pelas florestas e nos campos até que a experiência lhes ensinou a necessidade do governo.»

A justificação de Hobbes para o poder absoluto é estritamente racional e friamente utilitária, completamente livre de qualquer tipo de religiosidade e sentimentalismo, negando implicitamente a origem divina do poder.

O que Hobbes admite é a existência do pacto social. Esta é a sua originalidade e novidade.

Hobbes não se contentou em rejeitar o direito divino do soberanos, fez tábua rasa de todo o edifício moral e político da Idade Média. A soberania era em Hobbes a projecção no plano político de um individualismo filosófico ligado ao nominalismo, que conferia um valor absoluto à vontade individual. A conclusão das deduções rigorosas do pensador inglês era o gigante Leviatã, dominando sem concorrência a infinidade de indivíduos, de que tinha feito parte inicialmente, e que tinham substituído as suas vontades individuais à dele, para que, pagando o preço da sua dominação, obtivessem uma protecção eficaz. Indivíduos que estavam completamente entregues a si mesmos nas suas actividades normais do dia-a-dia.

Infinidade de indivíduos, porque não se encontra em Hobbes qualquer referência nem à célula famíliar, nem à família alargada, nem tão-pouco aos corpos intermédios existentes entre o estado e o indivíduo, velhos resquícios da Idade Média. Hobbes refere-se a estas corporações no Leviatã, mas para as criticar considerando-as «pequenas repúblicas nos intestinos de uma maior, como vermes nas entranhas de um homem natural». Os conceitos de «densidade social» e de «interioridade» da vida religiosa ou espiritual, as noções de sociabilidade natural do homem, do seu instinto comunitário e solidário, da sua necessidade de participação, são completamente estranhos a Hobbes.

É aqui que Hobbes se aproxima de Maquiavel e do seu empirismo radical, ao partir de um método de pensar rigorosamente dedutivo. A humanidade no estado puro ou natural era uma selva. A humanidade no estado social, constituído por sociedades civis ou políticas distintas, por estados soberanos, não tinha que recear um regresso à selva no relacionamento entre indivíduos, a partir do momento em que os benefícios consentidos do poder absoluto, em princípio ilimitado, permitiam ao homem deixar de ser um lobo para os outros homens. Aperfeiçoando a tese de Maquiavel, Hobbes defende que o poder não é um simples fenómeno de força, mas uma força institucionalizada canalizada para o direito (positivo), - «a razão em acto» de R. Polin - construindo assim a primeira teoria moderna do Estado.

Deste Estado, sua criação, os indivíduos não esperam a felicidade mas a Paz, condição necessária à prossecução da felicidade. Paz que está subordinada a um aumento considerável da autoridade - a do Soberano, a da lei que emana dele.

Mas, mesmo parecendo insaciável, esta invenção humana com o nome de um monstro bíblico, não reclama o homem todo. De facto, em vários aspectos o absolutismo político de Hobbes aparece como uma espécie de liberalismo moral. Hobbes mostra-se favorável ao desenvolvimento, sob a autoridade ameaçadora da lei positiva, das iniciativas individuais guiadas unicamente por um interesse individual bem calculado, e por um instinto racional aquisitivo.

quarta-feira, 16 de agosto de 2006

Lutero e o pensamento político da Reforma protestante.

A obra de Lutero Von weltlicher Oberkeit wie weit man ihr Gehorsam schuldig sei de 1523 é, talvez, a sua mais detalhada exposição das ideias políticas e que, como o título indica, lida com a autoridade temporal. Em alguns territórios alemães (Meissen e Baviera por exemplo) fora proibida a tradução do Novo Testamento e as pessoas intimadas a entregar os exemplares que possuíam. Nela o autor aconselha os seus fiéis a desobedecer às leis e a sofrer como os mártires. Para se justificar expõe a doutrina da instituição divina da autoridade temporal e a obrigação do cristão em desobedecer civilmente se a autoridade prevaricasse. A argumentação parte de Romanos,13,1 e segs., epístola endereçada a uma comunidade romano-cristã, vivendo sob autoridades pagãs, e a que um pouco de ordem nas suas más inclinações e atitudes apenas faria bem. No Apelo de 1520, considerara, em continuidade com a tradição medieval, que a função governamental se tornara uma das funções carismáticas do corpo místico; o estado cristão coincidia com a nação; a nobreza alemã podia ser chamada para levar a cabo a reforma nacional-cristã. As ideias de 1520 eram ainda reforma. Três anos depois tudo mudara. A individualização da experiência religiosa destruíra o equilíbrio entre os poderes carismáticos temporal e espiritual. O governante é um não-cristão que persegue os bons cristãos luteranos. Deve invocar-se a nova autoridade espiritual contra o poder temporal que se tornou não-cristão. Os fiéis devem seguir a Bíblia contra a Igreja e seus concílios. O poder espiritual tornara-se o Anticristo, o temporal era tirânico, o indivíduo estava entregue a si próprio. Situação insuportável? Mas levou mais de 100 anos a ser estabilizada. Neste sentido, 1523 é o fim da Idade Média.

Ao destruir-se o equilíbrio entre autoridades institucionais espiritual e temporal, todos os homens pertencem quer ao Reich Gottes (os fiéis) quer ao Reich der Welt cuja espada pune os actos malvados. Os cristãos não carecem da espada porque vivem em paz; mas devem respeitar o poder da espada porque é útil ao seu próximo. E assim é possível satisfazer dois senhorios, o reino de Deus e o reino do Mundo. Infelizmente não é fácil satisfazer a dois senhores. A civitas Dei e a civitas terrena de Agostinho não são reinos no tempo. Na história concreta existe Igreja e império. A Igreja representa a Civitas Dei mas boa parte dos seus membros pertencem à civitas terrena. A salvação é um dom divino imperscrutável. Lutero regressa ao significado de Tyconius. A ideia de Igreja é destruída pela doutrina que só a fé salva. Ser cristão é comprar a Bíblia de Lutero e seguir a consciência. A civitas dei torna-se demasiado fácil e visível. Ora a consciência de ser bom Cristão é muito fácil de surgir. Se aparece alguém que se considera bom cristão e que só pratica iniquidades que se lhe pode responder ? E se for um movimento de massas que pedem a abolição da autoridade temporal porque o reino de deus já chegou ? Poderiam sobrevir abusos da liberdade evangélica. A solução era remeter os abusadores para o redil do governo temporal. Mas se o governo temporal age mal ? Se interfere com os cristãos e os proíbe de ler as Bíblias que Lutero traduzira ? Deverá o cristão então resistir ? Em resumo, não há solução.

Quando a ordem institucional destruída fica à mercê do decisisonismo da consciência individual é a guerra de todos contra todos. A nova ordem terá que ser imposta às consciências rebeldes. Esta é origem da razão de estado, aceite pelas Igrejas. Mas de momento é só o princípio. A liberdade evangélica significava, por exemplo, o que vinha no III dos Doze Artigos dos servos camponeses revoltados (1525) um documento de inegável grandeza humana: «Tem sido costume até agora que os homens nos possuam como sua propriedade; e isto é lamentável vendo que Cristo nos redimiu a todos com o precioso derramamento do seu sangue, aos humildes bem como aos grandes, sem excepção de ninguém. Portanto é conforme às Escrituras que sejamos livres e assim o queremos ser». Que respondeu Lutero ? «Isto é tornar a liberdade cristã uma realidade totalmente carnal. Não tiveram também escravos Abraão e outros patriarcas ?.Este artigo tornaria todos os homens iguais e converteria o reino espiritual de Cristo num reino mundano e externo; e isso é impossível porque um reino mundano não pode ficar em pé a menos que nele exista a desigualdade, de modo a que uns sejam livres, outros presos, uns senhores e outros súbditos». Os camponeses não o escutaram, seguiram outra interpretação das Escrituras e o seu coração tomou a decisão da revolução social violenta. Em 1523 aconselhara no escrito Von weltlicher Oberkeit: «A heresia é um assunto espiritual que não pode ser cortado com o ferro, queimado com o fogo ou afogado em água». Em 1525 pediu aos nobres e aos cavaleiros para massacrar os heréticos. Os cavaleiros não se fizeram rogados. Foi o fim do sonho da Reforma através da palavra. Lutero viveu ainda 20 anos. Mas nada mais tinha para dizer. Em cerca de oito anos criara ideias decisivas para o decurso da história da consciência moderna e perante as quais o cisma Protestante é quase secundário.

Destruíra o núcleo da cultura espiritual cristã ao atacar a doutrina da fides caritate formata. Reduzira a fé a um acto de confiança ao retirar-lhe a intimidade da graça, sempre exposta às tentações do orgulho e da soberba. A consciência empírica da justificação pela fé cria uma ruptura na natureza humana.

Destruíra a cultura intelectual ocidental ao atacar a Escolástica aristotélica. Se o esplendor medieval foi escurecido pelas lentes torpes dos modernos, parte da responsabilidade deve-se a Lutero. A sua atitude anti-filosófica criou o padrão depois agravado por sucessivas gerações de intelectuais Iluministas, positivistas, marxistas e liberais.

A justificação sola fide arruina o equilíbrio da existência humana. A ideia do paraíso de amor industrioso transferiu a ênfase da vita contemplativa para a ideia de realização humana através de um trabalho e de um serviço útil. O homem confia em Deus; depois vai à vida. No nosso tempo, esta atrofia da cultura intelectual e espiritual degenera no pragmatismo do sucesso.

Fala-se de Lutero como de alguém que possuía as virtudes e os vícios típicos do alemão. Mas se pensarmos, para só referir teólogos, em Alberto Magno, Eckhardt, Tauler, Nicolau de Cusa e o anónimo de Frankfurt, então ele nada tinha de germânico. Criou certamente um tipo humano: o revoltado voluntarista que deseja impor a sua razão como o centro da ordem institucional.
A sua obra é a manifestação de uma personalidade bizarra cuja força vital o faz romper com a história e lançar-se sozinho contra o mundo. O seu apelo à acção directa contrasta com o contemptus vulgi de Maquiavel, o ascetismo e a pleonexia do intelectual de Erasmo e a ironia jocosa e amargura diplomática de Moro. Perante a força dramática da vontade luterana de violentar o juízo da história, tais autores fazem figuras de pobres revoltados. Força, porém, não é sinónimo de grandeza e não se pode pensar à maneira dos liberais do séc XIX que o sucesso seja sinal de valor. O grande indivíduo é um sintoma da ruptura da civilização. Por outro lado, os críticos de Lutero costumam ver a desordem espiritual e as carências do seu temperamento mas esquecem a degradação das tradições por acção de instituições e pessoas que já quase só representavam os defeitos. Ora as revoluções só se desencadeiam se houver condições de resposta das massas. No início da Reforma, a tradição degradara-se a tal ponto que um número cada vez maior de pessoas se sentia desligada de qualquer corpo místico. O indivíduo estava disponível para a violência renovadora. Entre os aspectos mais negativos da acção de Lutero conta-se a irresponsabilidade do apelo à autonomia de interpretação das escrituras e ao homo spiritualis. Faltava-lhe intuição intelectual e imaginação para ver as consequências. Mas esta deficiência que o cegava na teoria, robustecia a capacidade de agir; não entendia os enormes obstáculos iria criar. No aspecto positivo, era um observador excepcional e um talento administrativo. Conhecia os males do seu povo; tinha a moralidade e o bom senso de os aconselhar a diminuir as suas dependências; estimava os seus compatriotas: e conhecia perfeitamente o animal em que o homem se transforma se não for vigiado. Tinha todos os requisitos para ser um bom ministro num estado social-democrata. Mas passou à história convencional como o reformador da religião cristã.

quinta-feira, 10 de agosto de 2006

O pensamento de HOBBES segundo HANNAH ARENDT

O imperialismo deve ser considerado o primeiro estágio do domínio político da burguesia e não o último estágio do capitalismo. Sabe-se muito bem do pouco interesse demonstrado em exercer o poder pelas classes proprietárias pré burguesas, que se contentavam com qualquer tipo de Estado, desde que lhe pudessem confiar a protecção da sua propriedade. Na verdade, para elas o Estado havia sido sempre uma. força policial bem organizada. Essa falsa modéstia, contudo, teve a curiosa consequência de manter toda a classe burguesa fora do corpo político; antes de serem súbditos numa monarquia ou cidadãos numa república, eram essencialmente pessoas privadas. Essa privatividade e a preocupação principal de ganhar dinheiro haviam gerado uma série de padrões de conduta que encontram expressão nos provérbios – «nada é tão bem sucedido como o sucesso», «a força é o direito», «o direito é a conveniências, etc. -que são necessariamente frutos da experiência de uma sociedade competitiva.

Quando, na era do imperialismo, os comerciantes se tornaram políticos e foram aclamados como estadistas, enquanto os estadistas só eram levados a sério se falassem a língua dos comerciantes bem sucedidos e «pensassem em termos de continentes», essas práticas e mecanismos privados transformaram-se gradualmente em regras e princípios para a condução dos negócios públicos. É significativo que esse processo de reavaliação, iniciado no fim do século XIX e ainda em vigor, tenha começado com a aplicação de convicções burguesas aos negócios estrangeiros, e só lentamente tenha sido estendido à política doméstica. Assim, as nações interessadas mal perceberam que o desregramento que se introduzia na vida privada, e contra a qual a estrutura, política sempre tivera de defender-se a si própria e aos seus cidadãos, estava a pique de ser promovido ao posto de único princípio político publicamente reconhecido.

É importante observar que os modernos adeptos da força estão em completo acordo com a filosofia do único grande pensador que jamais tentou derivar o bem público a partir do interesse privado e que, em benefício deste bem privado, concebeu e esboçou uma Commonwealth cuja base e objectivo final é a acumulação do poder. Hobbes é, realmente, o único grande filósofo de que a burguesia pode, com direito e exclusividade, orgulhar-se, embora os seus princípios não fossem reconhecidos pela classe burguesa durante muito tempo. O Leviatã 1 de Hobbes expôs a única teoria política segundo a qual o Estado não se baseia em nenhum tipo de lei construtiva - seja divina, seja natural ou de contrato social - que determine o que é certo ou errado no interesse individual em relação às coisas públicas, mas sim nos próprios interesses individuais, de modo que «o interesse privado e o interesse público são a mesma coisa» 2.

É difícil encontrar um único padrão moral burguês que não tenha sido previsto pela inigualável magnificência da lógica de Hobbes. Ele pinta um quadro quase completo não do Homem, mas do homem burguês. uma análise que em trezentos anos não se tornou antiquada nem foi suplantada. «A razão... é nada mais que cálculo»; «um súbdito livre, uma vontade livre... (são) palavras... sem significado, isto é, um Absurdo». O homem é essencialmente uma função da sociedade e é, portanto, julgado de acordo com o seu «valor ou merecimento... o seu preço; ou seja, aquilo que se lhe daria pelo uso da sua força». Esse preço é constantemente avaliado e reavaliado pela sociedade, fonte da «estima dos outros», de acordo com a lei da oferta e da procura.

O poder, segundo Hobbes, é o controlo que permite estabelecer os preços e regular a oferta e a procura de modo que sejam vantajosas aos que detêm este poder. O indivíduo de início isolado, do ponto de vista da minoria absoluta, compreende que só pode atingir e realizar os seus alvos e interesses com a ajuda de certa espécie de maioria. Portanto, se o homem não é realmente motivado por nada além dos seus interesses individuais, o desejo do poder deve ser a sua paixão fundamental. É esse desejo de poder que regula as relações entre o indivíduo e a sociedade e todas as outras ambições, porquanto a riqueza. o conhecimento e a fama são as suas consequências.

Hobbes mostra que, na luta pelo poder, como na capacidade inata de o desejar, todos os homens são iguais, pois a igualdade do homem reside no facto de cada um, por natureza, ter suficiente potencialidade para matar um outro, já que a fraqueza pode ser compensada pela astúcia. A igualdade coloca todos os homens na mesma insegurança; daí a necessidade do Estado. A raison d'être do Estado é a necessidade de dar alguma segurança ao indivíduo, que se sente ameaçado por todos os seus semelhantes.

O traço crucial do retrato que Hobbes pinta do homem não está no seu pessimismo realista, porque se fosse verdade que o homem é um ser como Hobbes o quer, não seria capaz de fundar qualquer corpo político. Na verdade, Hobbes não consegue, nem realmente procura, incorporar definitivamente esse ser numa comunidade política. O Homem de Hobbes não deve qualquer lealdade ao seu país se este for derrotado, e é desculpado de qualquer traição caso venha a ser feito prisioneiro. Aqueles que vivem fora da comunidade (os escravos, por exemplo) não têm nenhuma obrigação para com os que a compõem e podem matar tantos quantos quiserem; mas, por outro lado, «nenhum homem tem a liberdade de resistir à espada da comunidade em defesa de outro homem, culpado ou inocente», o que significa que não existe nem espírito de companheirismo nem responsabilidade entre homens. O que os mantém juntos é um interesse comum, como por exemplo. «algum crime capital, pelo qual todos esperam ser punidos com a morte», tendo neste caso o direito «de se unir, ajudando-se e defendendo-se uns aos outros. ...Pois apenas defendem as suas vidas».

Assim, a participação em qualquer forma de comunidade é para Hobbes temporária e limitada e essencialmente não muda o carácter solitário e privado do indivíduo (que não tem «prazer, mas, pelo contrário, muito desgosto em manter companhia, quando não há força para obrigá-lo a tanto»), nem cria laços permanentes entre ele e os companheiros. O resultado é a inerente e confessada instabilidade da comunidade – Commonwealth – de Hobbes, cuja própria concepção prevê a sua ulterior dissolução: «quando numa guerra (estrangeira ou intestina) os inimigos obtêm a vitória final... então o Commonwealth é dissolvido, e cada homem tem a liberdade de se proteger a si mesmo». Esta instabilidade é surpreendente na teoria de Hobbes, na medida em que o seu objectivo primário é assegurar um máximo de segurança e estabilidade.

Seria uma grave injustiça a Hobbes e à sua dignidade como filósofo considerar esse retrato do homem como tentativa de realismo psicológico ou verdade filosófica. O facto é que Hobbes não está interessado nem num nem noutra, mas preocupa-se exclusivamente com a própria estrutura política e traça as feições do homem em função das necessidades do Leviatã. Para fins de argumento e convicção, apresenta o seu esboço político partindo do desejo de poder pelo homem e passando para o plano do corpo político adaptado a essa sede de poder.

Esse corpo político foi concebido para o uso da nova sociedade burguesa que emergia no século XVII, e esse quadro do homem é um esboço do novo tipo de homem que se adequava a ele. O Commonwealth é baseado na delegação da força, e não do direito. Adquire o monopólio de matar e dá em troca uma garantia condicional contra o risco de ser morto. A segurança é proporcionada pela lei, que emana directamente do monopólio de força do Estado (e não é estabelecida pelo homem segundo padrões humanos de «certo» e «errado»). Porque na lei do Estado não existe a questão de «certo» ou «errado», mas apenas a obediência absoluta, o cego conformismo da sociedade burguesa. E como essa lei flúi directamente do poder que ela torna absoluto, passa a representar a necessidade absoluta aos olhos do indivíduo que vive sob ela.

Despojado de direitos políticos, o indivíduo, para quem a vida pública e oficial se manifesta sob o disfarce da necessidade, adquire novo e maior interesse pela sua vida privada e pelo seu destino pessoal. Excluído da participação na gerência dos negócios públicos que envolvem todos os cidadãos, o indivíduo perde tanto o lugar a que tem direito na sociedade como a conexão natural com os seus semelhantes. Agora, só pode julgar a sua vida privada individual comparando-a com a dos outros, e as suas relações com os companheiros dentro da sociedade tomam a forma de concorrência. Numa sociedade de indivíduos, todos dotados pela natureza de igual capacidade de força e igualmente protegidos uns dos outros pelo Estado, que regula os negócios públicos e os problemas de convívio sob o disfarce da necessidade, apenas o acaso pode decidir quem vencerá 3.

De acordo com os padrões burgueses, aqueles que são completamente destituídos de sorte e não têm sucesso são automaticamente excluídos da competição, que é a essência da vida da sociedade. A boa sorte é identificada com a honra e a má sorte com a vergonha. Transferindo para o Estado os seus direitos políticos, o indivíduo delega nele também as suas responsabilidades sociais: pede ao Estado que o alivie do ónus de cuidar dos pobres, exactamente como pede protecção contra os criminosos. Não há mais diferença entre mendigo e criminoso ambos estão fora da sociedade. Os que fracassam perdem a virtude que a civilização clássica lhes legou: os que são infelizes já não podem apelar para a caridade cristã.

Hobbes isenta os que são excluídos da sociedade – os fracassados, os infelizes, os criminosos – de qualquer obrigação em relação ao Estado e à sociedade, se o Estado não cuida deles. Podem dar rédea solta ao seu desejo de poder, e são até aconselhados a tirar vantagem da sua capacidade elementar de matar, restaurando assim aquela igualdade natural que a sociedade esconde apenas por uma questão de conveniência. Hobbes prevê e justifica que os proscritos sociais se organizem em bandos de assassinos, como consequência lógica da filosofia moral burguesa.

Como a força é essencialmente apenas um meio para um fim, qualquer comunidade baseada unicamente na força entra em decadência quando atinge a calma da ordem e da estabilidade; a sua completa segurança revela que ela é construída sobre a areia. O poder só é capaz de garantir o status quo adquirindo mais poder; só pode permanecer estável ampliando constantemente a sua autoridade através do processo de acumulação de poder. O Commonwealth de Hobbes é uma estrutura vacilante que está sempre a precisar de ir em busca de novos esteios de fora; de contrário, ruiria imediatamente para a insensatez do caos de interesses privados de onde surgiu. Hobbes incorpora a necessidade de acumulação de poder à teoria do estado natural, à «condição de guerra perpétua» de todos contra todos, na qual os vários Estados mantêm em relação aos outros a posição que caracterizava os seus súbditos antes de se submeterem à autoridade da Commonwealth 4. Essa perene possibilidade de guerra garante à Commonwealth uma esperança de permanência, porque torna possível ao Estado aumentar o seu poder à custa de outros Estados.

Seria erróneo tomar pelo seu valor aparente a óbvia inconsistência entre o apelo de Hobbes a favor da segurança do indivíduo e a inerente instabilidade da sua Commonwealth. Novamente aqui ele tenta persuadir, apelar para certos instintos básicos de segurança que, como ele sabia muito bem, podiam sobreviver nos súbditos do Leviatã apenas sob a forma de absoluta submissão à força que «os intimida a todos», isto é, um medo esmagador e universal - que não é exactamente o sentimento básico do homem que se julga seguro. O ponto de partida de Hobbes é uma incomparável compreensão das necessidades políticas do novo corpo social da burguesia em ascensão, cuja crença fundamental num processo interminável de acumulação de propriedade estava a ponto de eliminar toda a segurança individual. Hobbes chegou às necessárias conclusões a partir da análise dos padrões de conduta social e económica quando propôs mudanças revolucionárias na constituição política. Esboçou o novo corpo político que corresponderia aos novos anseios e Interesses da nova classe. O que realmente conseguiu foi retratar o homem segundo os padrões de conduta da futura sociedade burguesa.

A insistência de Hobbes quanto ao poder como motor de todas as coisas humanas e divinas (até o reino de Deus sobre os homens «não provém de os ter criado... mas do Poder Irresistível») se devia à proposição, teoricamente indiscutível, de que a infindável acumulação de propriedade deve basear-se na infindável acumulação do poder. O correlativo filosófico da instabilidade inerente de uma comunidade baseada na força é a imagem de um processo histórico infindável que, para ser consistente com o constante aumento de poder, envolve inexoravelmente os indivíduos, os povos e, finalmente, toda a humanidade. O processo ilimitado de acumulação de capital necessita de uma estrutura política de «poder tão ilimitado» que possa proteger a propriedade crescente, tornando-a cada vez mais poderosa. Dado o fundamental dinamismo da nova classe social, é perfeitamente verdadeiro que «ela não pode garantir o poder e os meios de viver bem, que alcança num determinado instante, sem adquirir mais». A coerência dessa conclusão não é absolutamente afectada pelo facto de que, durante cerca de trezentos anos, não houve um soberano que «convertesse esta verdade especulativa em utilidade prática», nem uma burguesia com suficiente consciência política e maturidade económica para adoptar abertamente a filosofia do poder de Hobbes.

Este processo de constante acumulação de poder, necessário à protecção de uma constante acumulação de capital, criou a ideologia «progressivas dos fins do século XIX e prenunciou o aparecimento do imperialismo. Não a tola ilusão de um crescimento ilimitado de propriedade, mas a compreensão de que a acumulação de poder era o único modo de garantir a estabilidade das chamadas leis económicas, tomou irresistível o progresso. A noção de progresso do século XVIII, tal como era concebido na França pré-revolucionária, pretendia que a crítica do passado fosse um meio de domínio do presente e de controlo do futuro; o progresso culminava com a emancipação do homem. Mas essa noção tinha pouco ou nada em comum com a infindável evolução da sociedade burguesa, que não apenas não desejava a liberdade e autonomia do homem, mas estava pronta a sacrificar tudo e todos a leis históricas supostamente supra-humanas. «Aquilo a que chamamos progresso é (o) vento... [que] impele [o anjo da história] irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas enquanto o monte de ruínas diante de si se ergue até aos céus» 5. Somente no sonho de Marx de uma sociedade sem classes que, nas palavras de Joyce, faria a humanidade despertar do pesadelo da História, é que surge um vestígio último, embora utópico, do conceito do século XVIII.

O negociante de mentalidade imperialista, a quem as estrelas aborreciam porque não podia anexá-las, sabia que o poder organizado como finalidade em si geraria mais poder. Quando a acumulação de poder atingiu os seus naturais limites nacionais, a burguesia percebeu que apenas com uma ideologia de expansão e apenas com um processo económico que reflectisse o da acumulação de poder, seria possível colocar novamente o motor em funcionamento. Ao mesmo tempo, porém, quando parecia que o verdadeiro moto perpétuo havia sido descoberto, a atitude especificamente optimista da ideologia do progresso foi abalada. Não que alguém duvidasse da irresistibilidade do processo, mas muitos começaram a perceber aquilo que havia assustado Cecil Rhodes: que a condição humana e os limites do globo eram um sério obstáculo a um processo que, por um lado, não podia parar nem estabilizar-se e que, por outro lado, só podia provocar uma série de catástrofes destruidoras, quando atingisse esses limites.

Na época imperialista, a filosofia do poder tornou-se a filosofia da elite, que logo descobriu, e estava pronta a admitir, que a sede de poder só podia ser saciada pela destruição. Foi esta a causa essencial do seu niilismo (especialmente conspícuo na França do início do século XX e na Alemanha da década de Vinte), que substituía a superstição do progresso pela superstição da ruína, e pregava a aniquilação automática com o mesmo entusiasmo com que os fanáticos do progresso automático haviam pregado a irresistibilidade das leis económicas. Hobbes, o grande idólatra do Sucesso, tinha levado três séculos para ser bem sucedido. Isso foi em parte devido à Revolução Francesa, que, com a sua concepção do homem como legislador e citoyen, quase havia conseguido evitar que a burguesia desenvolvesse inteiramente a sua noção de história como processo necessário. Mas em parte foi devido também às implicações revolucionárias da Commonwealth, ao seu intrépido rompimento com a tradição ocidental, coisas que Hobbes não deixou de apontar.

Todo o homem e todo o pensamento que não é útil e não se conforma ao objectivo final de uma máquina cujo único fim é a geração e a acumulação de poder é um estorvo perigoso. Hobbes achava que, os livros dos «antigos gregos e romanos» eram tão «prejudiciais» como o ensinamento cristão do «Summum bonum... como é pronunciado nos livros dos velhos filósofos moralistas», ou a doutrina de que «tudo o que um homem faz contra a sua consciência é pecado», e de que as «leis são as regras do justo e do injusto». A profunda suspeita alimentada por Hobbes em relação a toda a tradição ocidental de pensamento político não nos surpreende, se lembrarmos que ele procurava nada menos que justificar a Tirania que, embora houvesse ocorrido muitas vezes na história do Ocidente, nunca havia sido homenageada com um fundamento. filosófico. Hobbes confessa orgulhosamente que o Leviatã é realmente um governo permanente de tirania: «a palavra Tirania significa nada mais nada menos que a palavra Soberania... Acho que tolerar o ódio declarado à Tirania é tolerar o ódio à comunidade em geral».

Por ser filósofo, Hobbes já podia perceber na ascensão da burguesia todas aquelas qualidades anti tradicionalistas da nova classe, que iriam levar três séculos para se desenvolver por completo. O seu Leviatã não se perdia em especulações ociosas a respeito de novos princípios políticos nem da velha busca da razão que governa a comunidade dos homens; era estritamente um «cálculo das consequências», que advêm da ascensão de uma nova classe na sociedade, cuja existência está essencialmente ligada à propriedade como um mecanismo dinâmico produtor de mais propriedade. A chamada acumulação de capital que deu origem à burguesia mudou o próprio conceito de propriedade e riqueza: estes já não. eram mais considerados como resultado da acumulação e da aquisição, mas sim o seu começo; a riqueza tornou-se um processo interminável de se ficar mais rico. A classificação da burguesia como classe proprietária é apenas superficialmente correcta, porquanto a característica dessa classe é que todos podem pertencer a ela, contanto que concebam a vida como um processo permanente de aumentar a riqueza, e considerem o dinheiro como algo sacrossanto que de modo algum deve ser usado como simples instrumento de consumo.

Contudo, a propriedade em si é sujeita ao uso e ao consumo e, portanto, diminui constantemente. A forma mais radical – e a única segura – de posse é a destruição, pois só possuímos para sempre e com certeza aquilo que destruímos. Os donos de propriedade que não consomem, mas continuamente procuram aumentar as suas posses, esbarram com um limite muito inconveniente: o facto lamentável de que os homens morrem. A morte é o verdadeiro motivo pelo qual a propriedade e a aquisição jamais podem tornar-se um princípio político verdadeiramente válido. Um sistema social baseado essencialmente na propriedade não pode levar a outra coisa senão à destruição final de toda a propriedade. A finitude da vida pessoal é um desafio tão sério à propriedade como fundamento social, quanto os limites do globo são um desafio à expansão como fundamento do sistema político. Por transcender os limites da vida humana, o crescimento automático e contínuo da riqueza além das necessidades e possibilidades de consumo pessoais, que é a base da propriedade individual, torna-se assunto público e sai da esfera da simples vida privada. Os interesses privados que, por sua própria natureza, são temporários, limitados pela duração natural da vida do homem, podem agora fugir para a esfera dos negócios públicos e pedir-lhes emprestado aquele tempo infinito necessário à acumulação contínua. Isto parece criar uma sociedade muito parecida com a das formigas e das abelhas, onde «o bem comum não difere do bem privado; e, naturalmente inclinadas para o benefício privado, consequentemente procuram o benefício comum».

Como, porém, os homens não são formigas nem abelhas, tudo não passa de uma ilusão. A vida pública assume um aspecto enganador quando aparenta constituir a totalidade dos interesses privados, como se esses interesses pudessem criar uma qualidade nova pelo simples facto de serem somados. Todos os chamados conceitos liberais de política (isto é, todas as noções políticas pré-imperialistas da burguesia) -como a concorrência sem limites, regulada por um secreto equilíbrio que provém, de modo misterioso, da soma total das actividades concorrentes; a busca de um «esclarecido interesse próprio» como virtude política; o progresso limitado baseado na simples sucessão dos acontecimentos – têm isto em comum: simplesmente adicionam vidas privadas e padrões de conduta pessoais e apresentam o resultado como leis de história, de economia ou de política. Mas os conceitos liberais, embora expressem a instintiva suspeita da burguesia e a sua inata hostilidade em relação aos negócios públicos, são apenas uma acomodação temporária entre os velhos padrões de cultura ocidental e a crença da nova classe na propriedade como principio dinâmico e automotivo. Os velhos padrões cedem à medida que a riqueza, crescendo automaticamente, passa realmente a substituir a acção política.

Embora nunca inteiramente reconhecido, Hobbes foi o verdadeiro filósofo da burguesia, porque compreendeu que a aquisição de riqueza, concebida como processo sem fim, só pode ser garantida pela tomada do poder político, pois o processo de acumulação violará, mais cedo ou mais tarde, todos os limites territoriais existentes. Previu que uma sociedade, que havia escolhido o caminho da aquisição contínua, tinha de engendrar uma organização política dinâmica capaz de levar a um processo contínuo de geração de poder. E, através de simples voo da imaginação, pôde até esboçar tanto os principais traços psicológicos do novo tipo de homem que se encaixaria em tal sociedade, quanto a tirania da sua estrutura política. Previu como necessária a idolatria do poder que caracteriza esse novo tipo humano, e pressentiu que ele se sentiria lisonjeado ao ser chamado animal sedento de poder, embora na verdade a sociedade o forçasse a renunciar a todas as suas forças naturais, virtudes e vícios, e fizesse dele o pobre sujeitinho manso que não tem sequer o direito de se erguer contra a tirania e que, longe de lutar belo poder, se submete a qualquer governo existente e não mexe um dedo nem mesmo quando o seu melhor amigo cai vítima de uma raison d'état incompreensível.

Assim, uma Commonwealth baseada no poder acumulado e monopolizado de todos os seus membros individuais torna todos necessariamente impotentes, privados das suas capacidades naturais e humanas. Degrada o indivíduo à condição de peça insignificante na máquina de acumular poder, livre para se consolar, se quiser, com pensamentos sublimes a respeito do destino final dessa máquina, construída de forma a ser capaz de devorar o mundo, se simplesmente seguir a lei que lhe é inerente.

O objectivo final de destruição dessa Commonwealth é pelo menos indicado na interpretação filosófica da igualdade humana como «igual capacidade» de matar. Vivendo com as outras nações «numa condição de guerra perpétua, sempre à beira do combate, com as suas fronteiras armadas e canhões assestados contra os vizinhos», não tem outra lei de conduta senão «a que melhor leve ao (seu) benefício», e gradualmente devorará as estruturas mais fracas até que chegue a uma última guerra «que dê a todos os homens a vitória ou a morte».

Com «vitória ou morte», o Leviatã pode realmente suplantar todas as limitações políticas provenientes da existência de outros povos e envolver toda a terra na sua tirania. Mas quando vier a última guerra e todos os homens tiverem recebido o seu quinhão, nenhuma paz final terá sido estabelecida na terra: a máquina de acumular poder, sem a qual a expansão contínua não teria sido possível, precisará de novo material para o devorar no seu infindável processo. Se a última Commonwealth vitoriosa não puder anexar os planetas, s6 poderá passar a devorar-se a si mesma, para começar novamente o infinito processo da geração de poder.

Notas:

1. Todas as citações que se seguem e às quais corresponda uma nota são do Leviatã.
É muito significativo que esta identificação de interesses coincida com a alegação totalitária de haver abolido as contradições entre os interesses públicos e os indivíduos (vide capítulo III do vol. III). Contudo, não se deve esquecer que Hobbes estava interessado principalmente em proteger os interesses privados alegando que, correctamente interpretados, eles eram também os interesses do corpo político, ao passo que, pelo contrário, os regimes totalitários proclamam a não existência da privatividade.

A promoção do acaso à posição de árbitro final da vida iria atingir o seu ponto mais alto no século XIX. Como resultado, surgiu um novo género de literatura, o romance que acompanhou o declínio do drama. Pois o drama perdeu o seu sentido, num mundo sem acção, enquanto o romance podia tratar adequadamente os destinos de seres humanos que eram quer vítimas da necessidade, quer favoritos da sorte. Balzac demonstrou todo o alcance do novo género e chegou a apresentar as paixões humanas como o destino do homem, sem vício nem virtude, nem razão, nem livre-arbítrio. Só o romance na sua completa maturidade, tendo interpretado e reinterpretado toda a gama dos temas humanos, podia pregar o novo evangelho da paixão do homem pelo seu próprio destino, que teve papel tão importante entre os intelectuais do século X.IX. Através dessa paixão, o artista e o intelectual tentavam traçar uma distinção entre si mesmos e os outros, proteger-se contra a desumanidade da boa e da má sorte, e desenvolveram todos os dons da sensibilidade moderna - pronta para o sofrimento, compreensão, desempenho de determinado papel - tão desesperadamente necessária à dignidade humana, que exige que um homem seja pelo menos uma vítima, se não puder ser outra coisa.
A noção liberal de um Governo Mundial baseia-se, como todas as noções liberais de poder político, no mesmo conceito de indivíduos que se submetem a uma autoridade central que os intimida a todos, excepto que, no caso, as noções tomam o lugar dos indivíduos. O Governo Mundial deve sobrepujar e eliminar a política autêntica, que consiste na justaposição de povos diferentes vivendo uns com os outros em pleno exercício do seu próprio poder.
Walter Benjamim em: Über den Begriff der Geschichte (Sobre o conceito da História) (publicado por Institut für Sozialforschung, Nova lorque. 1942, mimeografado). Os próprios imperialistas conheciam muito bem as implicações do seu conceito de progresso. O autor, que escrevia sob o pseudónimo de A. Carthill, funcionário inglês que havia servido na Índia e que é bem representativo da época, disse: «Deve-se sempre ter pena daqueles que são esmagados pelo carro triunfal do progresso» (op. cit., pág. 209).

domingo, 6 de agosto de 2006

HISTÓRIA DO BRASIL IMPÉRIO

Brasil Império é o período da história do Brasil entre a Independência em 1822 até a Proclamação da República em 1889. Divide-se entre o Primeiro Império, o Período Regencial e o Segundo Império. Com o advento desse período, cessa-se o título de Rei do Brasil.

Elevação a Império

Após a Guerra da Independência, em 1825, o título de Príncipe do Brasil foi desvinculado dos príncipes aspirantes ao trono português, passando esses a usar somente o título de Duque de Bragança. Nomeadamente, Pedro I do Brasil foi o último a deter ambos os dois títulos, tendo sido Príncipe Regente do Brasil por um curto período pouco antes da Independência. Dom Pedro, por sua vez, inicia a linhagem de imperadores do Brasil a partir de sua coroação como Imperador do Brasil na Capela Imperial, Rio de Janeiro, aos 12 de outubro de 1822. Contudo, apesar do título de Príncipe do Brasil, mais nomeadamente Príncipe Imperial do Brasil, vicejar até os dias de hoje, apenas Pedro de Bragança e seu filho detiveram o trono imperial.

Após a renúncia de Pedro I ao trono, inicia-se o Período Regencial, que vigora até que Pedro II atinja a maioridade e esteja apto a exercer o direito nato de ascenção ao trono.

Imperador Titular do Brasil – Dinastia de Bragança

Quando do término da Guerra da Independência do Brasil, foi estabelecido o Tratado do Rio de Janeiro aos 29 de agosto de 1825 entre Portugal e Brasil. Pelo tratado, a coroa portuguesa reconhecia a independência do antigo reino, mas reservava a D. João VI, pai de D. Pedro I, o título de Imperador do Brasil. O tratado, a princípio, anulava a norma anterior da Constituição brasileira de 1824, a qual proibia que o governante exercesse poder sobre Portugal e Brasil simultaneamente. Não obstante, D. João VI não foi o Imperador de facto, haja vista que não foi sagrado como tal, nem expediu qualquer ato político, e muito menos D. Pedro declarou-se ex-Imperador. A situação sui generis de haver dois Imperadores brasileiros durou pouco, pois sete meses depois D. João VI viria a falecer.

quinta-feira, 3 de agosto de 2006

Maquiavel e o pensamento político.

Maquiavel (1469-1527) é um dos mais originais pensadores do renascimento, uma figura brilhante mas também algo trágica. Durante os séculos XVI e XVII, o seu nome será sinónimo de crueldade, e em Inglaterra o seu nome tornou ainda mais popular o diminutivo Nick para nomear o diabo, não havendo pensador mais odiado nem mais incompreendido do que Maquiavel. A fonte deste engano é o seu mais influente e lido tratado sobre o governo, O Príncipe, um pequeno livro que tentou criar um método de conquista e manutenção do poder político.

A vida de Maquiavel cobriu o período de maior esplendor cultural de Florença, assim como o do seu rápido declínio. Este período, marcado pela instabilidade política, pela guerra, pelo intriga, e pelo desenvolvimento cultural dos pequenos estados italianos, assim como dos Estados da Igreja, caracterizou-se pela integração das rivalidades italianas no conflito mais vasto entre a França e a Espanha pela hegemonia europeia, que preencherá a última parte do século XV e a primeira metade do século XVI. De facto, a vida de Maquiavel começou no princípio deste processo - em 1469, quando Fernando e Isabel, os reis católicos, ao casarem unificaram as coroas de Aragão e Castela, dando origem à monarquia Espanhola.

Maquiavel era filho de um influente advogado florentino, e durante a sua vida viu florescer a cultura e o poder político de Florença, sob a direcção política de Lourenço de Médicis, o Magnífico. Veria também o crepúsculo do poder da cidade quando o filho de Lourenço e seu sucessor, Piero de Médicis, foi expulso pelo monge dominicano Savonarola, que criou uma verdadeira República Florentina. Quando Savonarola, um fanático defensor da reforma da Igreja, foi também ele expulso do poder e queimado, uma segunda república foi fundada por Soderini em 1498. Maquiavel foi secretário desta nova república, com uma posição importante e distinta. A república, entretanto, foi esmagada em 1512 pelos espanhóis que instalaram de novo os Médicis como governantes de Florença.

Maquiavel parece não ter tido uma posição política clara. Quando os Médicis retomaram o governo, continuou a trabalhar incansavelmente para cair nas boas graças da família. O que prova que, ou era extraordinariamente ambicioso, ou acreditava de facto no serviço do estado, não lhe importando o grupo ou o partido político que detinha as rédeas do governo. Os Médicis, de qualquer maneira, nunca confiaram inteiramente nele, já que tinha sido um funcionário importante da república. Feito prisioneiro, torturaram-no em 1513 acabando por ser banido para a sua propriedade em San Casciano, mas esta actuação dos Médicis não o impediu de tentar novamente ganhar as boas graças da família. Foi durante o seu exílio em San Casciano, quando tentava desesperadamente regressar à vida pública, que escreveu as suas principais obras: Os discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, O Príncipe, A História de Florença, e duas peças. Muitas destas obras, como O Príncipe, foram escritas com a finalidade expressa de conseguir uma nomeação para o governo dos Médicis.

A extraordinária novidade, tanto dos Discursos como do Príncipe, foi a separação da política da ética. A tradição ocidental, exactamente como a tradição chinesa, ligava tanto a ciência como a actividade política à ética. Aristóteles tinha resumido esta posição quando definiu a política como uma mera extensão da ética. A tradição ocidental, via a política em termos claros, de certo e errado, justo e injusto, correcto e incorrecto, e assim por diante. Por isso, os termos morais usados para avaliar as acções humanas eram os termos empregues para avaliar as acções políticas.

Maquiavel foi o primeiro a discutir a política e os fenómenos sociais nos seus próprios termos sem recurso à ética ou à jurisprudência. De facto pode-se considerar Maquiavel como o primeiro pensador ocidental de relevo a aplicar o método científico de Aristóteles e de Averróis à política. Fê-lo observando os fenómenos políticos, e lendo tudo o que se tinha escrito sobre o assunto, e descrevendo os sistemas políticos nos seus próprios termos. Para Maquiavel, a política era uma única coisa: conquistar e manter o poder ou a autoridade. Tudo o resto - a religião, a moral, etc. -- que era associado à política nada tinha a ver com este aspecto fundamental - tirando os casos em que a moral e a religião ajudassem à conquista e à manutenção do poder. A única coisa que verdadeiramente interessa para a conquista e a manutenção do poder manter é ser calculista; o político bem sucedido sabe o que fazer ou o que dizer em cada situação.

Com base neste princípio, Maquiavel descreveu no Príncipe única e simplesmente os meios pelos quais alguns indivíduos tentaram conquistar o poder e mantê-lo. A maioria dos exemplos que deu são falhanços. De facto, o livro está cheio de momentos intensos, já que a qualquer momento, se um governante não calculou bem uma determinada acção, o poder e a autoridade que cultivou tão assiduamente fogem-lhe de um momento para o outro. O mundo social e político do Príncipe é completamente imprevisível, sendo que só a mente mais calculista pode superar esta volatilidade.

Maquiavel, tanto no Príncipe como nos Discursos, só tece elogios aos vencedores. Por esta razão, mostra admiração por figuras como os Papa Alexandre VI e Júlio II devido ao seu extraordinário sucesso militar e político, sendo eles odiados universalmente em toda a Europa como papas ímpios. A sua recusa em permitir que princípios éticos interferissem na sua teoria política marcou-o durante todo o Renascimento, e posteriormente, como um tipo de anti-Cristo, como mostram as muitas obras com títulos que incluíam o nome anti-Maquiavel. Em capítulos como «De que modo os príncipes devem cumprir a sua palavra» (cap. XVIII) Maquiavel afirma que todo o julgamento moral deve ser secundário na conquista, consolidação e manutenção do poder. A resposta à pergunta formulada mais acima, por exemplo, é que:

«Todos concordam que é muito louvável um príncipe respeitar a sua palavra e viver com integridade, sem astúcias nem embustes. Contudo, a experiência do nosso tempo mostra-nos que se tornaram grandes príncipes que não ligaram muita importância à fé dada e que souberam cativar, pela manha, o espírito dos homens e, no fim, ultrapassar aqueles que se basearam na lealdade».

Pode ajudar na compreensão de Maquiavel imaginar que não está a falar sobre o estado em termos éticos mas sim em termos cirúrgicos. É que Maquiavel acreditava que a situação italiana era desesperada e que o estado Florentino estava em perigo. Em vez de responder ao problema de um ponto de vista ético, Maquiavel preocupou-se genuinamente em curar o estado para o tornar mais forte. Por exemplo, ao falar sobre os povos revoltados, Maquiavel não apresenta um argumento ético, mas cirúrgico: «os povos revoltados devem ser amputados antes que infectem o estado inteiro.»

O único valor claro na obra de Maquiavel é a virtú (virtus em Latim), que é relacionado normalmente com «virtude». Mas de facto, Maquiavel utiliza-a mais no sentido latino de «viril», já que os indivíduos com virtú são definidos fundamentalmente pela sua capacidade de impor a sua vontade em situações difíceis. Fazem isto numa combinação de carácter, força, e cálculo. Numa das passagens mais famosas do Príncipe, Maquiavel descreve qual é a maneira mais apropriada para responder a volatilidade do mundo, ou à Fortuna, comparando-a a uma mulher: «la fortuna é donna». Maquiavel refere-se à tradição do amor cortesão, onde a mulher que constitui o objecto do desejo é abordada, cortejada e implorada. O príncipe ideal para Maquiavel não corteja nem implora a Fortuna, mas ao abordá-la agarra-a virilmente e faz dela o que quer. Esta passagem, já escandalosa na época, representa uma tradução clara da ideia renascentista do potencial humano aplicado à política. É que, de acordo com Pico della Mirandola, se um ser humano podia transformar-se no que quisesse, então devia ser possível a um indivíduo de carácter forte pôr ordem no caos da vida política.