sábado, 29 de julho de 2006

DO PRINCIPIO DAS SOCIEDADES POLÍTICAS.

Sendo todos os homens, como já se disse, naturalmente livres, iguais, e independentes, ninguém pode ser posto fora deste estado e sujeito ao poder o politico doutro, sem o seu próprio consentimento. O único meio por onde qualquer se priva da sua liberdade natural, e se liga à sociedade civil, é convindo com outros homens em se ajuntar e unir com eles em sociedade civil, a fim de haver segurança, paz, e sossego entre eles, e obterem um gozo seguro das suas propriedades, e uma segurança maior contra qualquer que não pertence à mesma sociedade. Isto qualquer número de homens o pode fazer; pois que não prejudica a liberdade dos outros, os quais se deixam na mesma liberdade do estado natural em que estavam. Todas as vezes que qualquer número de homens der um tal consentimento para se fazer uma sociedade civil ou governo, eles por esse facto ficam incorporados e formados em corpo político, aonde a maioria tem direito a governar.

Porquanto, quando qualquer número de homens estabelece com consentimento de cada indivíduo uma sociedade civil, eles por esse facto constituem essa sociedade como um corpo com poder de obrar como tal, o que é unicamente pela vontade e determinação da maioria: porquanto, sendo o consentimento dos seus indivíduos unicamente o que dirige a sociedade, é necessário que essa sociedade, que é um corpo só, se mova para aquela parte pura onde a maior força o conduz, a qual é o consentimento da maioria: do contrário, é impossível poder obrar, ou continuar a ser um corpo, uma comunidade, em que consentiu cada individuo que entrou nela; portanto, todos estão obrigados em consequência desse consentimento a ser governados pela maioria. E por isso nós vemos que nas assembleias autorizadas a obrar por meio de leis positivas, quando a lei positiva que os autoriza não determina número certo, o acto da maioria passa como acto do todo, e por conseguinte decide como se tivesse pela lei natural e da razão o poder do todo.

Portanto todo o homem pelo acto de convir com outros em formar um corpo político debaixo dum governo, se obriga para com cada um dos dessa sociedade a se submeter à determinação da maioria, e de ser governado por ela; ou alias este pacto original, por meio do qual ele se incorpora com outros numa sociedade, não valeria coisa alguma, e não seria pacto, se ele tivesse sido deixado livre, e sujeito a nenhuns outros vínculos ou obrigações que aquelas que ele tinha no estado natural. Que aparência pois podia haver dum pacto ou promessa, se as determinações da sociedade o não obrigassem a mais do que àquilo que ele mesmo julgasse conveniente, e a que tivesse prestado o seu consentimento? Isto seria ter uma liberdade tão grande como a que ele tinha antes de ter feito o pacto, ou como tem qualquer outro no estado natural, o qual se pôde submeter e consentir a quaisquer dos seus actos, se o julgar a propósito.

Porquanto, se o consentimento da maioria se não receber como o acto do todo, e não abranger a todo o indivíduo, nenhuma outra coisa, que não seja o consentimento de cada indivíduo, pode fazer o acto do todo: porém um consentimento tal é imediato ao impossível, considerando nós as enfermidades, e as imensas ocupações que num número ainda mesmo muito menor que o duma república, necessariamente apartam a muitos da assembleia publica. E se nós acrescentar-mos a isto a variedade de opiniões e a contrariedade de interesses, que existem inevitavelmente em todos as corporações de homens, o entrar para a sociedade debaixo de tais cláusulas seria somente como a entrada de Catão no teatro, unicamente para tornar a sair. Uma constituição tal como esta faria o poderoso leviatã duma duração mais curta do que as criaturas as mais fracas; e não o deixaria passar além do dia em que nasceu: o que se não pode supor enquanto não julgar-mos que as criaturas racionais desejam e constituem sociedades unicamente para se dissolverem: porquanto, aonde a maioria não pôde dirigir o resto, aí não podem obrar como um corpo só, e por consequência se dissolverão imediatamente outra vez.

Por conseguinte, deve-se entender que todo aquele que sair do estado natural para se unir em sociedade civil, cede todo o poder que for necessário aos fins para que ele se uniu à maioria da sociedade, salvo se eles convierem expressamente em algum número maior do que o da maioria. E isto acontece pelo simples acto de convir em se unir em sociedade política, o que vem a ser todo o pacto que há, ou que é preciso entre os indivíduos que fazem ou compõem uma república. Portanto, aquilo que dá princípio e com efeito constitui uma sociedade politica, não é outra coisa mais do que o consentimento de qualquer número de homens livres, que tem o uso da razão para se unirem e incorporarem numa sociedade tal. E é isto o que, e somente isto o que deu ou podia dar principio a todo e qualquer governo legitimo.

Acho duas objecções feitas contra isto.
Primeira. Que na historia se não acham exemplos duma companhia de homens independentes e iguais entre si que se encontrassem, e que começassem e estabelecessem um governo desta maneira.Segunda. Que é contra todo o direito que homens assim fizessem, por isso mesmo que nascendo todos os homens debaixo dum governo, eles se lhe devem submeter e não têm a liberdade de começar um de novo.

Em resposta à primeira direi, que não é de admirar que a história nos dê uma relação tão limitada dos homens que viverão juntos no estado natural. As inconveniências daquele estado, o amor e a necessidade da sociedade, logo que uniu alguns deles, imediatamente os incorporou, se é que eles tinham intenção de continuar a viver juntos. E se acaso nós não podemos supor que os homens estivessem jamais no estado natural, por ter-mos poucas notícias deles nesse estado, podemos igualmente supor que os exércitos de Salmanassar ou de Xerxes nunca foram meninos, por isso mesmo que temos pouca notícia deles antes de serem homens e estarem incorporados em exércitos. O governo é em toda a parte anterior à memoria dos homens, e as letras de ordinário não se introduzem num povo senão depois de ter existido por muito tempo em sociedade civil, e de ter cuidado noutras artes mais necessárias para a sua segurança, bem estar, e abundância: e é então que ele começa a indagar a história dos seus fundadores, e a examinar a sua origem, quando tem sobrevivido à sua memória: pois acontece às repúblicas, bem como às pessoas particulares, o ignorarem, normalmente as suas próprias origens e infâncias: e se sabem alguma coisa da sua origem, elas o devem às memórias acidentais que outros têm conservado a tal respeito. E aquelas que nós temos do começo das diferentes formas de governos que tem havido, à excepção da dos Judeus, aonde o mesmo Deus se interpôs imediatamente, e que não favorece de maneira alguma o domínio paternal, são todas ou exemplos claros dum principio tal qual eu mencionei , ou ao menos. tem sinais evidentes disso.

Na verdade, é bem notável a inclinação de negar a matéria evidente do facto quando se não conforma com a hipótese daquele que não quer conceder que a origem de Roma e Veneza começou pela união dalguns homens livres e independentes uns dos outros, e entre os quais não havia sujeição ou superioridade alguma natural. E se dermos crédito ao que diz Joseph Acosta, em muitas partes da América não havia qualidade alguma de governo. «Há grandes e evidentes conjecturas,» diz ele, «que estes homens,» falando dos do Peru, «por muito tempo não tiveram nem Reis nem Repúblicas, mas andavam em bandos, como andam hoje em dia na Florida os Cheriquanas, os do Brasil, e outras muitas nações, que não têm Reis certos, mas, segundo o exige a paz ou a guerra, assim escolhem os seus capitães segundo lhes parece,» lv. 1. c.25. Se se disser que aí todo o homem nasceu sujeito a seu pai, ou ao chefe da sua família, que a sujeição que um filho deve a seu pai não o privou da liberdade de se unir aquela sociedade política que lhe pareceu; isso já está demonstrado. Mas, seja como for, é claro que estes homens eram com efeito livres: e não obstante qualquer superioridade que alguns políticos constituiriam presentemente em qualquer deles, eles mesmos não a pretendiam; mas eram todos iguais por consentimento, até que pelo mesmo consentimento estabeleceram governantes sobre si mesmos. De maneira que todas as suas sociedades políticas procederam duma união voluntária, e do consentimento mútuo de homens que obraram livremente na escolha de seus governadores e forma do seu governo.

E eu espero que se concederá que aqueles que se apartaram de Esparta com Palantus, mencionados por Justino, lv. 3. c. 4, foram homens livres e independentes uns dos outros, e que estabeleceram por seu próprio consentimento um governo sobre si mesmos. Tenho pois referido vários exemplos tirados da história, de povos livres que estando no estado natural, e encontrando-se, se incorporaram, e principiaram uma república. E se a falta de tais exemplos servir de argumento para provar que o governo não principiou, nem podia principiar assim, julgo que os defensores do império paternal fariam melhor em não a mencionar do que, servir-se dela contra a liberdade natural. Porquanto, se é que eles podem referir outros tantos exemplos tirados da história, de governos começados no direito paternal, julgo (ainda que segundo a boa razão, um argumento do que tem sido, para o que por direito devia ser, não tem grande força,) que se podia, sem grande risco, ceder-lhes a causa. Se me fosse porém permitido aconselhá-los sobre o caso, eles fariam bem em não examinar demasiadamente na origem dos governos o modo porque eles principiaram de facto, a fim de não descobrirem na fundação da maior parte deles alguma coisa muito pouco favorável ao intento que eles favorecem, e a um poder tal qual eles defendem.

Tendo nós porém claramente mostrado que os homens são naturalmente livres, e os exemplos tirados da história mostrando-nos que os governos do mundo que começaram em paz tinham firmado o seu princípio nesse alicerce, e foram feitos por consentimento do povo; pouco lugar pode haver para duvidar em que consiste o direito, ou qual tem sido a opinião ou prática do género humano sobre a primeira formação dos governos.

Eu não negarei, que se nós indagar-mos a origem das repúblicas tanto quanto a história nos encaminha, geralmente as acharemos debaixo do governo e administração dum só homem. E também me inclino a crer que aonde uma família era assaz numerosa para subsistir por si só, e que continuou a viver toda junta sem se unir com outras, como acontece frequentemente naquela partes aonde há muito terreno e pouco povo, o governo começou comummente no pai. Porquanto, tendo o pai pela lei natural o mesmo poder que tem qualquer outro homem para punir, segundo ele julgar que é justo, quaisquer ofensas contra essa lei, podia por essa razão punir os seus filhos transgressores, mesmo depois de serem homens e estarem fora da sua tutela; e é muito provável que eles se sujeitassem ao seu castigo, e que todos eles se unissem alternadamente com ele contra o transgressor, dando-lhe por este meio o poder de executar a sua sentença contra qualquer transgressão, e fazendo-o deste modo o legislador e governante de todos os que estavam em conjunção com a sua família. Ele era aquele em quem mais se podia confiar; pois que a afeição paternal segurava a sua propriedade e interesses debaixo de seu cuidado; e o costume de lhe obedecer na sua infância inclinava-os antes à sujeição do pai do que à doutro qualquer. Porquanto se é preciso que eles tenham um homem que os governe, pois que o governo mal se pôde evitar entre homens que vivem juntos, quem mais provável e próprio para o ser do que aquele que é o seu pai comum, excepto se a negligência, crueldade, ou qualquer outro defeito da mente ou do corpo, o fez incapaz para isso? Mas quando acontecesse morrer o pai, e deixar o seu herdeiro imediato com pouca ou nenhuma capacidade para governar, por falta de idade, saber, coragem, ou quaisquer outras qualidades; ou quando algumas famílias se ajuntaram e consentiram em continuar a viver juntas; não se pode duvidar que então eles se serviram da sua liberdade natural para eleger aquele que julgaram o mais hábil, e o mais capaz para os governar bem. Semelhante a isto achamos aqueles povos da América, que, vivendo fora do alcance das espadas vencedoras e crescente dominação dos dois grandes impérios do Peru e México, gozaram a sua liberdade natural, e ainda que, coetereis paribus, eles comummente preferem o herdeiro do seu Rei defunto; todavia se eles o acham fraco ou incapaz, então não fazem caso dele, e elegem para seu director o homem mais robusto, o mais bravo, e o mais capaz.

Portanto, não obstante ver-mos, se examinarmos tanto quanto poder-mos as memórias acerca do princípio da povoação do mundo, e a História das nações, que o governo estava comummente num só homem; todavia isso não torna fútil aquilo que eu armo, viz. que o princípio da sociedade politica depende dos indivíduos consentirem em se unir e fazer uma sociedade; a qual, quando eles assim e acham incorporados, pode estabelecer aquela forma de governo que melhor lhe parecer. Sendo isto porem o que deu lugar a que os homens se enganassem, e julgassem que o governo era naturalmente monárquico, e que pertencia ao pai, não será fora, de propósito examinar-mos neste lugar a razão porque no principio o povo escolheu geralmente esta forma de governo ; e ainda que fosse talvez a preeminência do pai o que lhe deu lugar na primeira instituição dalgumas republicas, e que no principio instituiu o poder num só homem; todavia é claro que a razão porque se continuou com a forma do governo duma única pessoa não era por atenção ou respeito à autoridade paternal; visto que todas as monarquias pequenas, que são quase todas elas, foram quase no seu principio comummente electivas, ou pelo menos em algumas ocasiões.

No principio pois, o governo que o pai exercia sobre os seus meninos tendo-os acostumado ao governo dum só homem, e ensinando-lhes que ele, quando se exercia com cuidado e habilidade, com afabilidade e amor para com os que lhe estão sujeitos, era suficiente para procurar e dar aos homens toda a felicidade politica que eles procurarão na sociedade; não é para admirar que eles escolhessem, e naturalmente estabelecessem aquela forma de governo, à qual eles tinham estado acostumados desde a sua infância, e que por experiência tinham achado não só cómoda como também segura. E se acrescentar-mos a isto, que a monarquia sendo simples e a mais clara para os homens, a quem nem a experiência tinha instruído sobre as formas de governo, nem a ambição ou arrogância do império tinha ensinado a se acautelarem das usurpações da prerrogativa, ou das inconveniências do poder absoluto; não era de admirar que eles não cuidassem muito em pensar sobre os meios de restringir quaisquer exorbitâncias daqueles a quem tinham dado autoridade sobre si, e de pôr em equilíbrio o poder do governo, constituindo algumas das suas partes em diversas mãos., Eles ainda não tinham sentido a opressão do domínio tirânico, nem o espírito do século, nem as suas possessões, ou maneira de viver, (o que pouco motivo dava à cobiça ou ambição,) lhes deu motivo algum para o temer ou prevenir: e por isso não é de admirar que eles se constituíssem debaixo duma tal forma de governo, a qual não somente era, como já disse, a mais clara e simples, mas também a mais própria para a sua condição e estado presente, que tinha mais necessidade de defesa contra as ofensas e invasões externas do que de multiplicidade de leis. .A igualdade de uma simples e humilde maneira de viver, limitando os seus desejos dentro dos estreitos limites da pequena propriedade de cada um, causou poucas controvérsias, e por isso não eram precisas muitas leis para as decidir, nem muitos funcionários para superintender os processos, ou fazer executar a justiça, aonde havia poucas ofensas e poucos ofensores. E como se não pôde deixar de supor que entre aqueles que se estimam mutuamente a ponto de se unirem em sociedade há algum conhecimento e amizade, e alguma confiança uns nos outros; por isso o seu primeiro cuidado e pensamento não podia ser senão sobre o modo porque eles se deviam segurar contra a força externa: e por conseguinte era-lhes natural o constituírem-se debaixo daquela forma de governo, que melhor lhes pudesse servir para esse fim; e escolherem o homem mais sábio e o mais bravo para os conduzir nas suas guerras, e capitaneá-los contra os seus inimigos; no que consistia principalmente o seu governo.

Porquanto, nós vemos que os Reis dos Índios da América são, o que é ainda uma amostra dos primeiros séculos da Ásia e da Europa, enquanto os habitantes eram demasiadamente poucos para o país, e a falta do povo e do dinheiro não incitou os homens a alargar as suas possessões de terreno, nem causou disputas por maiores extensões de herdades, pouco mais que generais de seus exércitos; ; e ainda que eles na guerra comandam com poder absoluto; todavia em casa e em tempo de paz exercem uma jurisdição muito limitada, e tem uma soberania muito moderada; pois que de ordinário as resoluções de paz e guerra estão ou no povo ou num concelho; ainda que a guerra, a qual não admite a pluralidade de governantes, se devolve naturalmente por si mesma à única autoridade do Rei.

E assim, até mesmo em Israel, a principal ocupação dos seus juízes e primeiros Reis parece ter sido a de capitães na guerra e chefes de seus exércitos, o que (além do que se declara nas palavras, «saindo e entrando diante do povo,» o que era para marchar para a guerra, e depois para casa, à frente das forças,) claramente se vê da história de Jefté. Os Amonitas fazendo a guerra a Israel, os Gaaladitas com medo mandam a Jefté um bastardo da sua família, que eles tinham expulso, para estipular com ele, se ele queria assisti-los contra os Amonitas, e para o fazer o seu chefe; o que eles fazem nestas palavras, «e o povo fê-lo seu cabeça e capitão,» [«O povo nomeou-o chefe e comandante», na tradução contemporânea] Juízes XI, 11 2, o que era, segundo parece, o mesmo que ser juiz. «E ele julgou Israel» [ou «Jefté foi juiz em Israel durante seis anos»] Juízes XII, 7, isto é, era o seu capitão-general, «seis anos.» Assim quando Joatão exprobra aos Sechemitas a obrigação que eles deviam a Gedeão, o qual tinha sido o seu juiz e director, ele diz-lhes, «ele bateu-se por vós, arriscou grandemente a sua vida, e vos libertou do poder de Madiã,» [«O meu pai lutou por vós e até arriscou a vida para vos livrar do poder de Madiã.»] Juízes IX, 17. Nada se menciona dele senão aquilo que ele fez como general; e com efeito isso é tudo o que se acha na sua história, ou na de qualquer dos outros juízes. E Abimelec é o que com particularidade é chamado Rei, ainda que quando muito era unicamente seu general. E no tempo em que os filhos Israel, estando enfadados da má conduta dos filhos de Samuel, desejarão hum Rei, «à semelhança de todas as nações, para os julgar, marchar à sua frente, e dirigir as suas batalhas,» [«seremos também como as outras nações: o nosso rei governar-nos-á, irá à nossa frente para comandar as nossas guerras.»] 1.º Livro de Samuel VIII, 20. Deus concedendo-lhes o seu desejo, diz a Samuel, «Eu vos mandarei um homem, e tu o ungirás para ser capitão do meu povo Israel, a fim de que ele possa livrar o meu povo do poder dos Filisteus,» [«vou mandar-te um homem da terra de Benjamim. Tu ungi-lo-ás como chefe do meu povo Israel, e ele libertará o povo do poder filisteu«] 1 Sam IX, 16, como se a única ocupação dum Rei tivesse sido a de capitanear os seus exércitos, e pelejar em sua defesa; e tanto assim que no acto da sua inauguração, lançando sobre ele um vaso de azeite, ele declara a Saúl que «o Senhor o tinha ungido para ser capitão da sua herança,» [«Eis o sinal de que Javé te ungiu como chefe da sua herança»] cap. X. ver. 1. E por isso aqueles que, depois de Saúl ter sido solenemente escolhido e saudado por seu Rei pelas tribos em Mispah, estavam com repugnância de o aceitar por seu Rei, não fazem outra objecção senão esta, «Como é que este homem nos há de salvar ?» [«Como é que este indivíduo nos poderá salvar»] ver. 27, como se eles dissessem, «Este homem é incapaz de ser nosso Rei, não tendo nem habilidade bastante, nem perícia da guerra para nos poder defender.» E quando Deus se resolveu a transferir o governo para David, é nestas palavras, «Mas agora o teu reinado não há de continuar: o Senhor procurou-lhe hum homem da sua escolha, e o Senhor lhe ordenou de ser capitão do seu povo,» [«Agora, porém, o teu reinado não se firmará. Javé encontrou um homem conforme o seu coração e nomeou-o chefe do seu povo»] cap. XIII, ver. 14. Como se toda a autoridade de Rei não consistisse em outra coisa senão o de ser general: e por isso as tribos que se tinham unido à família de Saúl, e oposto ao reinado de David, quando vieram a Hebron com termos de submissão a ele, elas dizem-lhe, que alem doutras razões que elas tinham para se lhe submeterem como a seu Rei, ele com efeito era o seu Rei no tempo de Saúl, e que por isso elas não tinham razão alguma para agora deixarem de o receber como tal. «Também,» dizem elas, «noutro tempo, quando Saúl era nosso Rei, tu foste o que nos conduzistes para fora, e que nos trouxeste para Israel; e o Senhor te disse, tu sustentarás o meu povo Israel, e serás o capitão de Israel.

Portanto, quer uma família chegasse, por degraus a fazer uma república, e a autoridade paternal continuasse no filho mais velho, crescendo cada um por sua vez debaixo dela, e submetendo-se-lhe tacitamente, a sua facilidade e igualdade não ofendendo a pessoa alguma, todos se acomodaram, até que o tempo pareceu tê-la confirmado, e estabelecido o direito de sucessão por prescrição: quer várias famílias, ou os descendentes de várias famílias, a quem o acaso, vizinhança, ou ocupação juntou, constituindo todos uma sociedade, a falta dum general, cuja conduta os pudesse defender na guerra contra os seus inimigos, e a grande confiança, a inocência e sinceridade daquela pobre mas virtuosa época, (tais são quase todas aquelas que principiam governos, cuja duração porém é sempre curta,) que os homens tinham uns nos outros, fizesse com que os primeiros principiantes de republicas dessem geralmente a administração a hum só homem, sem mais limitação ou restrição expressa do que aquela que a natureza da coisa e fita do governo exigia: é certo que o primeiro que no princípio entregou a administração a uma pessoa só, não lha confiou senão para o bem e segurança publica, e para esse fim comummente a usaram nas infâncias das repúblicas. E se aqueles que tinham esta administração não tivessem assim feito, as sociedades principiantes não podiam ter subsistido: sem uns tais pais criadores, afáveis e cuidadosos do bem público, todos os governos teriam perecido com as fraquezas e enfermidades da sua infância, e o mesmo Príncipe teria perecido em pouco tempo juntamente com o povo.

Porém, ainda que a idade de ouro (antes que a ambição vã, e, amor sceleratus habendi, a depravada concupiscência tivesse pervertido as mentes humanas no erro do verdadeiro poder e honra) tinha mais virtude, e por consequência melhores governantes, bem como súbditos menos viciosos; e não havia então prerrogativa que oprimisse o povo; nem por conseguinte disputa alguma sobre privilégio para diminuir ou restringir o poder do magistrado; e por isso nenhuma contenda entre os directores e o povo acerca dos governantes ou governo; todavia, nas idades futuras 3 quando a ambição e luxúria queria reter e aumentar o poder, faltando aos fins para que ele foi dado, e, auxiliada pela lisonja, ensinou aos Príncipes a ter interesses distintos e separados dos de seu povo, os homens então julgaram necessário examinar com mais cuidado a origem e direitos do governo; e de excogitar meios para restringir a exorbitância, e prevenir os abusos daquele poder, que eles tinham confiado nas mãos doutrem unicamente para o seu próprio bem, mas que se usava e empregava em seu prejuízo.

Portanto, é muito provável que o povo, que era naturalmente livre, e que por seu consentimento próprio ou se sujeitou ao governo de seu pai, ou de diferentes famílias se uniu debaixo dum governo, constituísse geralmente a administração nas mãos dum só homem, e escolhesse o governo duma única pessoa, sem ao menos limitar ou regular o poder por meio de condições expressas; pois que o julgou bastantemente seguro na sua honestidade e prudência; não obstante ele nunca ter sonhado que a monarquia era jure divino, o que nós nunca ouvimos entre o género humano, senão depois que a divindade deste ultimo século no-lo revelou; nem ter jamais reconhecido no poder paternal o direito de domínio, ou a base de todo o governo. Portanto isto é assaz para provar, que até onde a historia nos esclarece, nós temos razão para concluir, que todo o governo que teve princípios pacíficos foi fundado no consentimento do povo: digo pacíficos, porque em outro lugar terei a ocasião de falar da conquista, a qual é tida por alguns como hum meio de principiar os governos.

A outra objecção que eu acho proposta contra o princípio das sociedades politicas é esta, viz.
Que nascendo todos os homens debaixo dum governo qualquer, é impossível que quaisquer deles estivessem livres em tempo algum, e em liberdade de se unir uns com os outros, e começar hum de novo, ou que chegassem em tempo algum a poder erigir um governo legítimo.Se acaso isto é um bom argumento, pergunto como é que se introduziram tantas monarquias legítimas? Porquanto, se qualquer, debaixo desta suposição, for capaz de me mostrar um único homem, que em qualquer século do mundo estivesse livre para principiar uma monarquia legitima; eu me obrigo a mostrar-lhe outros dez homens livres com liberdade de se unir e principiar hum governo novo debaixo duma forma monárquica, ou de qualquer outra: pois que é evidente, que se alguém há, nascido debaixo do domínio doutrem, que seja tão livre que tenha o direito de governar outros num império novo e distinto; todo aquele que é nascido debaixo do domínio doutro pode ser igualmente tão livre como ele, e pôde por consequência vir a ser hum governante ou súbdito dum governo distinto e separado. Portanto, segundo este princípio, ou todos os homens, nascidos de qualquer maneira, são livres, ou então não há no mundo senão hum Príncipe, e um governo legítimo. E em tal caso, aqueles que fazem a objecção não tem mais nada a fazer do que mostrar-nos simplesmente quem é esse Príncipe e esse governo: e logo que o tiverem feito, eu não duvido que então todo o género humano convirá em lhe obedecer.

Não obstante ser uma resposta suficiente para a objecção deles o mostrar, que ela os envolve nas mesmas dificuldades que envolve aqueles contra quem eles a usam; todavia, eu me esforçarei a patentear mais alguma coisa a fraqueza deste argumento.

Todos os homens, dizem eles, nascem debaixo dum governo; e por isso não podem ter a liberdade de principiar hum de novo. Todo o homem nasce sujeito a seu pai, ou a seu príncipe; e por isso está debaixo do vínculo perpétuo de sujeição e obediência. É bem claro que o género humano sem seu próprio consentimento nunca reconheceu nem considerou tal sujeição natural em que ele nasceu, ou em respeito a um, ou em respeito ao outro, como uma sujeição a ele e a seus herdeiros. Porquanto, não há na história tanto profana como sagrada exemplos mais frequentes do que aqueles dos homens se apartarem da obediência e jurisdição do governo debaixo de que nasceram, ou da família e sociedade em que foram educados, e de estabelecerem governos novos em outros lugares; donde procederam tantas repúblicas pequenas; as quais foram sempre aumentando, enquanto houve espaço bastante, até que o mais forte, ou o mais afortunado, absorveu o mais fraco; e essas grandes repúblicas desfazendo-se outra vez, constituíram de novo domínios menores. O que tudo são depoimentos contra a soberania paternal, e provam claramente que não foi o direito natural que estabeleceu no princípio os governos; visto que era impossível que sobre essa base pudessem ter havido tantos domínios pequenos: tudo deveria ser uma única monarquia universal, se os homens não tivessem tido a liberdade de se separar das suas famílias e do governo, fosse ele qual, fosse, que estava estabelecido, e de constituir repúblicas e governos distintos, segundo eles julgaram conveniente.

Esta tem sido a prática do mundo desde o seu princípio até hoje. E o ser nascido presentemente debaixo de estabelecidas e antigas sociedades políticas, que estabeleceram leis e formas de governo, não impede mais a liberdade do género humano, do que se ele fosse nascido nos bosques entre os desenfreados habitantes que neles andam vagueando. Porquanto, aqueles que nos querem persuadir que o acto de nascer-mos debaixo dum governo nos sujeita naturalmente a ele, e que não temos direito ou pretensão alguma à liberdade do estado natural, não tem outra razão a dar, excepto a do poder paternal, (a que nós já respondemos) senão que nossos pais ou progenitores cederam a sua liberdade natural, e que por esse facto se obrigaram a si mesmos e à sua posteridade a uma sujeição perpétua, ao governo, a que eles mesmos se submeteram. É verdade que todo o homem está obrigado a cumprir com os pactos e promessas que fez por si; mas não pode por meio de pacto algum obrigar a seus filhos ou posteridade: porque, sendo o seu filho, quando já homem, tão livre como o pai, ele não tem mais direito a ceder a liberdade do filho do que a doutro qualquer. Ele pode na verdade anexar à terra, que possui como súbdito de alguma república, condições tais, que obriguem a seu filho a pertencer a essa república, uma vez que ele queira desfrutar as possessões que foram de seu pai; pois que sendo essas possessões propriedade de seu pai, ele pode dispor delas segundo lhe agradar.

E isto é o que geralmente tem dado lugar a se errar sobre este assunto; porque, não permitindo as repúblicas o desmembramento de parte alguma de seus domínios, nem que os outros, que não pertencem à sua sociedade, a possuam, o filho de ordinário não pode desfrutar os bens de seu pai senão debaixo das mesmas condições com que este os desfrutou, i. e. fazendo-se membro da sociedade; por meio do que, ele fica tão sujeito ao governo que aí acha estabelecido, como qualquer outro súbdito dessa república. E assim, sendo o consentimento dos homens livres nascidos debaixo de um governo, o qual é o que unicamente os faz seus membros, prestado por cada um em separado, segundo cada um chega a ter a idade, e não simultaneamente por todos; os homens não reparam nisso, e julgando que não há tal consentimento, ou que não é necessário, concluem que eles são naturalmente súbditos, logo que são homens.

É claro porém que os mesmos governos o entendem doutra maneira: eles não pretendem ter poder sobre o filho, por o terem sobre o pai, nem têm as crianças como seus súbditos, por os seus pais o serem. Se um súbdito Inglês tiver em França um filho duma Inglesa, de quem é ele súbdito? Não do Rei da Inglaterra; porque ele necessita de licença para ser admitido aos privilégios de súbdito Inglês; nem do Rei da França; porque se o fosse, que direito tinha seu pai a tirá-lo de lá, e a educá-lo segundo lhe agradar? E quem é que jamais foi julgado como traidor ou desertor, se ele deixou ou pelejou contra um país, por ter simplesmente nascido nele de pais que aí eram estrangeiros? Portanto, é claro, não só pela prática dos mesmos governos como também pela lei da recta razão, que um filho não nasce súbdito de país ou governo algum. Ele está debaixo da tutela e autoridade de seu pai até que chegue a idade da discrição; e então ele é um homem livre, e tem a liberdade de se sujeitar àquele governo que ele quiser, e de se unir ao corpo político que lhe agradar. Porquanto se o filho de um Inglês nascido em França é livre, e pode assim fazer, é claro que o acto de seu pai ser um súbdito deste reino o não obriga a coisa alguma; nem tão pouco pacto algum dos seus antepassados. E qual é então a razão porque seu filho não há de ter a mesma liberdade, ainda. que ele nasça em qualquer outra parte? Visto que o poder que um pai tem naturalmente sobre seus filhos é o mesmo aonde quer que eles nasçam; e que os vínculos da obrigação natural não estão demarcados pelos limites positivos dos reinos e repúblicas.

Sendo todo o homem, como já se demonstrou, naturalmente livre, e nada sendo capaz de o sujeitar a poder algum terrestre senão o seu próprio consentimento, deve-se considerar, que é o que se deve julgar como uma declaração suficiente do consentimento dum homem para o sujeitar ás leis de qualquer governo. Há uma distinção comum entre o consentimento tácito e o expresso, o que dirá respeito ao nosso caso presente. Ninguém duvida que o consentimento expresso de qualquer homem que entra para qualquer sociedade o faz hum membro perfeito dessa sociedade, um súbdito desse governo. A dificuldade está em saber o que é que se deve ter como um consentimento tácito, e até que ponto obriga, i. e. até que ponto é que se deve julgar que qualquer consentiu, e se submeteu a algum governo, não tendo ele praticado expressões algumas de consentimento. E a isto direi eu, que todo o homem que tem alguma possessão, ou usufruto de qualquer parte dos domínios de algum governo, nos manifesta por esse facto um consentimento tácito, e está tão obrigado à obediência das leis desse governo durante tal usufruto como qualquer outro dessa sociedade ; quer essa sua possessão consista em terra, para ele e seus herdeiros perpetuamente, ou unicamente num aposento por uma semana; quer consista em viajar livremente pela estrada: e com efeito esta sujeição estende-se a tanto quanto é a estada de qualquer dentro dos territórios desse governo.

Para melhor entender-mos isto, devemos lembrar-nos que todo o homem, quando se incorpora nalguma república, lhe anexa e sujeita igualmente aquelas possessões que ele tem, ou que poderá vir a ter, e que já não pertencem a outro governo. Porquanto seria uma contradição directa o entrar qualquer em sociedade com outros a fim de segurar e regular a propriedade, e supor todavia que a sua terra, cuja propriedade deve ser regulada pelas leis da sociedade, havia de ficar isenta da jurisdição daquele governo a que ele mesmo, o proprietário da terra, está sujeito. Portanto, aquele mesmo acto que qualquer pratica para unir a sua pessoa, que dantes era livre, a alguma república; esse mesmo une igualmente as suas possessões, que dantes eram livres, à mesma república, e tanto a pessoa como a possessão se constituem sujeitas ao governo e domínio dessa república enquanto existe. Por isso, todo aquele que depois dum tal acto possuir, por herança, compra, permissão, ou por outras quaisquer vias, qualquer parte da terra que estiver anexa, e pertença aos domínios dessa república, deve recebê-la com a condição que lhe está anexa ; a qual vem a ser, a de se submeter ao governo da república, debaixo de cuja jurisdição ele se acha, tanto quanto o está qualquer súbdito dela.

Porém, como o governo tem uma jurisdição directa unicamente sobre a terra, e se estende ao seu possuidor, (antes dele se ter com efeito incorporado à sociedade,) somente enquanto ele a habita e desfruta; a obrigação que tem qualquer, em virtude de tal usufruto, de se submeter ao governo, principia e acaba com o usufruto; de maneira que em qualquer tempo que o proprietário, que não deu ao governo senão um tal consentimento tácito, deixar, por doação, venda, ou por outra qualquer maneira, a dita possessão, tem a liberdade de se ausentar, e de incorporar-se a qualquer outra república, ou de convir com outros em principiar uma de novo, in vacuis locis, em qualquer parte do mundo que eles achem livre e desocupada. Pelo contrário porem, aquele que uma vez prestou o seu consentimento, por meio de qualquer convenção ou declaração expressa, para pertencer a alguma república, está perpétua e indispensavelmente obrigado a ser e permanecer inalteravelmente sujeito a ela, e nunca mais pode estar na liberdade do estado natural; excepto se por alguma calamidade o governo a que ele estava sujeito vem a dissolver-se, ou se ele for excluído por algum acto público.
122. O acto porém dum homem se sujeitar ás leis dum país qualquer, de viver sossegadamente, e gozar de privilégios e protecção a sombra delas não o faz membro dessa sociedade: isso é somente uma protecção local e homenagem devida a todos e da parte daqueles que, não estando em estado de guerra, entram no território pertencente a um governo qualquer, a todas as partes do qual se estende a força das suas leis: porem isto não constitui um homem membro dessa sociedade, ou um súbdito perpétuo dessa república, mais do que constituiria hum homem sujeito a outro, em cuja família ele julgou conveniente habitar por algum tempo; ainda que ele, durante a sua estada era obrigado a condescender com as leis, e a sujeitar-se ao governo que aí achou: e assim nós vemos que o acto dum estrangeiro viver toda a sua vida debaixo doutro governo, e de gozar os seus privilégios e protecção, não obstante estar ele obrigado, mesmo em consciência, a submeter-se à sua administração, tanto quanto o está qualquer estrangeiro naturalizado, não o constitui súbdito ou membro dessa república. Nada, senão uma convenção positiva, pacto, ou promessa expressa, pode fazer o homem um membro ou súbdito de uma republica. Esta é a minha opinião acerca do princípio das sociedades políticas, e do consentimento que torna hum homem membro de uma república.

quarta-feira, 26 de julho de 2006

DA SUBORDINAÇÃO DOS PODERES DE UMA REPÚBLICA.

. Ainda que numa república estabelecida, sustentando-se sobre a sua própria base, e obrando segundo a sua própria natureza, que é, obrando para conservação da sociedade, não pode haver mais do que um poder supremo, que é o legislativo, ao qual os outros estão e devem estar subordinados; todavia, o legislativo sendo tão somente hum poder fiduciário, que deve obrar para certos fins, fica ainda no povo um poder supremo para remover ou alterar o legislativo, todas as vezes que achar que o legislativo obra em contrário à confiança que nele colocou. Porquanto, sendo todo o poder que é dado como delegação para se obter um fim, limitado por esse mesmo fim, todas as vezes que esse fim for manifestamente desprezado ou oposto, a confiança necessariamente se deve perder, e o poder devolver-se para as mãos daqueles que o deram, os quais o podem colocar novamente onde julgarem mais conveniente para seu sossego e segurança. E por isso a sociedade retêm perpetuamente um poder supremo para se salvar das tentativas e desígnios de qualquer corpo, até mesmo dos seus legisladores, todas as vezes que eles forem tão loucos ou tão perversos, que meditem e executem desígnios contra as liberdades e propriedades do súbdito pois que não tendo homem algum, ou sociedade de homens, o poder de entregar a sua conservação, e por conseguinte os meios de a obter, à vontade absoluta e domínio arbitrário doutrem; todas as vezes que qualquer intentar constitui-los debaixo duma tal condição de servidão, eles terão sempre o direito de conservar aquilo que lhes não é permitido ceder, e de se desfazerem daqueles que invadem esta lei fundamental, sagrada, e inalterável, da própria conservação, para a qual eles entraram em sociedade. E portanto pode-se dizer a este respeito que a sociedade é sempre o poder supremo, não o considerando porém debaixo duma forma qualquer de governo; pois que este poder do povo nunca pode ter lugar em quanto o governo não for dissolvido.

Em todos os casos, em quanto o governo subsiste, o legislativo é o poder supremo. Porquanto, aquele que pode dar leis a outro, deve necessariamente ser seu superior; e como o legislativo não é legislativo da sociedade, senão pelo direito que tem de fazer leis para todas as partes, e para todos os membros da sociedade, prescrevendo regras às suas acções, e dando poder para a sua execução, aonde elas são transgredidas; por isso o legislativo deve necessariamente ser o supremo, e todos os outros poderes, em quaisquer membros ou partes da sociedade que se achem, derivados dele, e seus subordinados.

Naquelas repúblicas em que o legislativo não está sempre em ser, e onde o executivo está devem obediência senão à vontade pública da sociedade.O poder executivo colocado em qualquer outra parte que não seja uma pessoa que tem também quinhão no legislativo, é visivelmente subordinado e responsável ao mesmo legislativo e pode ser mudado e deposto a aprazimento; de maneira que não é o poder supremo executivo, que está isento da subordinação, mas sim o poder supremo executivo investido num, que tendo hum quinhão no legislativo, não tem hum legislativo superior e distinto a quem seja subordinado e responsável em mais do que ele mesmo concordar; de maneira que ele não está mais subordinado do que julgar próprio, o que facilmente se pode concluir que será bem pouco. Não necessitamos falar doutros poderes ministeriais e subordinados, que se contêm numa república, pois que são tão multiplicados e tão variados, segundo os diversos costumes e constituições das diferences republicas, que é impossível dar-se uma conta particular deles todos. Basta dizer-se deles para o nosso objecto presente, que nenhum deles tem autoridade alguma, alem daquela que lhes é delegada por comissão e concessão positiva, e todos eles são responsáveis a algum outro poder na república.

Não é necessário, nem mesmo conveniente, que o legislativo esteja sempre em ser, mas é absolutamente necessário que o poder executivo o esteja; por isso mesmo que não há sempre necessidade de se fazer leis novas, mas há sempre necessidade de se executarem as leis que estão feitas. Quando o legislativo entrega o poder da execução das leis que ele fez, em outras mãos, ainda tem poder para o reassumir dessas mãos, quando tiver causa para isso, e para punir qualquer «má administração contra as leis. O mesmo acontece também a respeito do poder federativo, sendo este e o executivo ambos ministeriais e subordinados ao legislativo, que, numa república bem ordenada, como já se demonstrou, é o poder supremo. Supondo-se também neste caso que o legislativo consta de diversas pessoas (porquanto se for uma pessoa única, não pode deixar de estar sempre em ser, e por conseguinte, como suprema, terá naturalmente o poder supremo executivo juntamente com o legislativo), elas podem ajuntar-se e exercer o seu poder legislativo nas estações marcadas, ou pela sua constituição original, ou pelo seu próprio adiamento, ou aliás quando lhe agradar, se nenhum destes casos tiver tempo marcado, ou se não houver outro meio prescrito para as convocar. Porquanto, o poder supremo achando-se depositado nelas pelo povo, está sempre nelas, e podem exerce-lo quando lhes agradar, excepto se pela sua constituição original estão limitados a certas épocas, ou se por um acto do seu poder supremo elas se adiaram para certo tempo; e logo que chega esse tempo, elas tem direito de se ajuntar, e trabalhar de novo.

Se o legislativo, ou qualquer parte dele, constar de representantes eleitos pelo povo por aquela vez somente, e que depois tornam para o seu estado ordinário de súbditos, não ficando com quinhão algum na legislatura senão por uma nova eleição; este poder de eleger deve também ser exercido pelo povo, ou em certas ocasiões demarcadas, ou então quando ele é ordenado para isso: e neste último caso, o poder de convocar o legislativo está, ordinariamente no executivo, o qual tem uma destas duas limitações enquanto ao tempo: que ou a constituição original exige que eles se ajuntem e trabalhem em certos intervalos, e então o poder executivo não faz mais do que dar ministerialmente algumas direcções para a sua eleição e reunião, segundo as formas devidas: ou então é deixado à sua prudência o chamá-los por meio de novas eleições, quando as ocasiões ou exigências do público requerem a reforma de leis antigas, ou precisam de leis novas ou reparação, ou prevenção de quaisquer inconveniências, que existem ou ameaçam o povo.

Pode-se aqui perguntar, que é que acontecerá se o poder executivo, estando de posse da força da república, fizer uso dessa força para impedir a reunião e os trabalhos do legislativo, quando a constituição original ou as exigências publicas o requererem? Ao que respondo, que ao uso da força para com o povo sem ter autoridade, e o obrar em contrário aos poderes que tem quem assim faz, constitui um estado de guerra com o povo, o qual tem direito a reassumir o seu legislativo no exercício do seu poder. Porquanto, tendo criado o legislativo com o fim dele exercer o poder de fazer leis ou em tempos certos e determinados ou quando houver necessidade; todas as vezes que ele for impedido por alguma força de fazer aquilo que é tão necessário para a sociedade, e em que consiste a segurança e conservação do povo, este tem direito a removê-lo por meio da força. Em todos os estados e condições, o verdadeiro remédio para a força empregada sem autoridade, é opor-lhe a força. O uso da força sem autoridade constitui sempre aquele que a usa num estado de guerra, como o agressor, e o sujeita a ser tratado como tal.

O poder de convocar e dissolver o legislativo, conferido ao executivo, não lhe dá superioridade sobre o legislativo; pois que este poder não é mais do que um depósito fiduciário, colocado nele para a segurança do povo, em algum caso, que a incerteza e mutabilidade dos negócios humanos não tenha podido determinar por uma regra certa e fixa. Porquanto, não sendo possível que os primeiros fundadores do governo antevissem os acontecimentos futuros duma maneira tal, que os habilitasse a prefixar uns períodos tão exactos de duração e regresso ás assembleias do legislativo, para todos os tempos futuros, que pudesse corresponder exactamente a todas as exigências da república; o melhor remédio que se podia achar para este defeito, era confiar isto à prudência dum que estivesse sempre presente, e que tivesse a seu cargo o vigiar pelo bem público. As reuniões constantes e frequentes do legislativo, e suas prolongadas assembleias sem necessidade, não podiam deixar de ser pesadas ao povo, e com o tempo deviam necessariamente produzir inconveniências muito perigosas; e todavia a mudança repentina dos negócios pode algumas vezes ser tal que necessite do seu socorro imediato. Qualquer demora que haja no seu ajuntamento pode pôr em perigo o público, e também algumas vezes os seus afazeres podem ser tantos, que o tempo marcado para a sua sessão seja demasiadamente curto para os seus trabalhos, e prive o publico daquele benefício que unicamente se pode conseguir da sua madura deliberação. Que é o que poderia então fazer-se neste caso afim de prevenir que a sociedade não esteja exposta em tempo algum a perigo iminente, duma ou doutra maneira, por meio de intervalos e períodos fixos, marcados para a reunião e trabalhos do legislativo, senão o confiá-lo à prudência dalguns, que estando presentes, e ao facto do estado dos negócios públicos, possam usar desta prerrogativa para o bem público? E aonde se poderia isto constituir melhor do que nas mãos daquele, a quem se confiou a execução das leis para o mesmo fim? Portanto, supondo que a regulação dos tempos para a reunião e sessão do legislativo não esteja determinada pela constituição original, ela cai naturalmente nas mãos do executivo, não como um poder arbitrário, dependendo só da sua vontade, mas sim com esta presunção, de que ele o exercerá em todo o tempo unicamente para o bem público, segundo as ocorrências dos tempos e mudança dos negócios o exigirem. Não me pertence indagar neste lugar, se os períodos marcados para o seu ajuntamento, ou se uma liberdade deixada ao Príncipe para convocar o legislativo, ou talvez uma mistura, de ambos estes casos, traz consigo a menor inconveniência; mas somente mostrar, que não obstante o poder executivo poder ter a prerrogativa de convocar e dissolver tais assembleias do legislativo, nem por isso lhe é superior.

As coisas deste mundo estão num fluxo tão constante, que nada permanece no mesmo estado por muito tempo. Assim o povo, riquezas, comércio, poder, mudam a sua condição, florescentes e poderosas cidades vem a arruinar-se, e com o andar do tempo não mostram mais do que sítios abandonados e desolados, no entretanto que outros lugares que não tem sido frequentados se tornam em países populosos, cheios de riqueza e de habitantes. Não mudando porem as coisas sempre igualmente, e muitas vezes o interesse particular conservando costumes e privilégios, tendo já cessado os seus motivos, acontece frequentemente que nos governos, aonde uma parte do legislativo se compõe de representantes eleitos pelo povo, com o andar do tempo esta representação se torna muito desigual e desproporcionada às razões sobre que foi estabelecida no princípio. Os grandes absurdos, que se podem seguir da continuação dum costume, para que já não há razão, facilmente se podem conhecer, quando vemos o simples nome duma cidade, de que não resta nem tanto como as suas próprias ruínas, onde apenas se pode achar mais casas do que um curral, ou mais habitantes do que um pastor, mandar tantos representantes para a grande assembleia dos legisladores, como hum Condado inteiro, cheio de população, e de riquezas 4. Os estrangeiros se admiram disto, e todos devem confessar que necessita de remédio: ainda que muitos julgam difícil o achar-se, porque sendo a constituição do legislativo o acto original e supremo da sociedade, anterior a todas as suas leis positivas, e dependendo inteiramente do povo, nenhum poder interior pode alterá-lo. E por isso o povo, uma vez constituído o poder legislativo, não tendo, num governo tal como este de que temos estado a falar, poder para obrar enquanto o governo existe; esta inconveniência é considerada como incapaz de remédio.

Salus populi suprema lex, é com efeito uma regra tão justa e tão fundamental, que aquele que sinceramente a segue não pode correr risco. Por isso se o executivo que tem o poder de convocar o legislativo, observando antes a verdadeira proporção do que a moda da representação, regula, não pelo costume antigo, amas pela verdadeira razão, o número dos membros, em todos os lugares que tem direito a ser representados distintamente, ao que nenhuma parte do povo, incorporado de qualquer maneira que seja, pode ter pretensões, que não sejam em proporção da assistência que isso dá ao público; isto não se pode considerar como uma instituição dum poder legislativo novo, mas somente como uma restauração do antigo e verdadeiro, e como rectificação das desordens que a sucessão do tempo insensível e inevitavelmente tinha introduzido. Porquanto, sendo o interesse e da intenção do povo, o ter uma representação justa e igual; todo aquele que mais a aproxima a isso, é sem duvida um amigo e fundador do governo, e não pode deixar de ter o consentimento e aprovação da sociedade: pois que a prerrogativa não sendo mais do que um poder constituído nas mãos do Príncipe para ele cuidar no bem público naqueles casos, que dependendo de ocorrências imprevistas e incertas, não podiam ser dirigidos com segurança por leis fixas e inalteráveis: tudo aquilo que se fizer manifestamente para bem do povo, e para o estabelecimento do governo sobre os seus verdadeiros alicerces é, e será sempre, uma prerrogativa justa. O poder de erigir corporações novas, e por conseguinte novos representantes traz consigo a suposição de que com o andar do tempo as medidas de representação podem variar, e venham a ser representados aqueles lugares que dantes não tinham direito a isso; e pela mesma razão, que aqueles que dantes tinham este direito de representação o percam, e deixem de gozar tal privilégio, em consequência da sua decadência. Não é a mudança do estado presente, que talvez a corrupção ou a decadência tenha introduzido, que invade o governo, mas sim a sua tendência a ofender ou a oprimir o povo, e a constituir uma parte ou partido com distinção ou desigual sujeição do resto. Tudo aquilo que se não pode deixar de reconhecer como vantajoso para a sociedade, e para o povo em geral, feito sobre medidas justas e duradouras, sempre se justificará a si mesmo quando feito; e todas as vezes que o povo eleger os seus representantes, regulando-se por medidas justas e iguais, próprias da forma original do governo, não se pode duvidar que é a vontade e acto da sociedade, quem quer que lhe permitiu ou foi a causa de assim fazerem.

Idade dos Metais

Foi um período muito importante, pois o homem pré-histórico fez vários avanços nas técnicas de produção de artefatos. Estes avanços, lhes permitiram melhores condições de vida. O conhecimento de técnicas de fundir e moldar os metais trouxe muitos avanços na vida cotidiana do homem pré-histórico.

Principais avanços do período da Idade dos Metais:

- Idade do Cobre - por volta de 6 mil anos atrás, o homem pré-histórico (homo sapiens sapiens) adquiriu conhecimentos para o desenvolvimento de técnicas para derreter e moldar o cobre. Usava moldes de pedra ou barro para colocar o cobre derretido e produzir espadas, lanças e ferramentas. Usava o martelo para moldar estes objetos depois que esfriavam.

- Idade do Bronze - por volta de 4 mil anos atrás, o homem começou a produzir o bronze (metal mais resistente que o cobre), a partir da mistura da liga do cobre com o estanho. Espadas, capacetes, martelos, lanças, facas, machados e outros objetos de bronze começaram a ser fabricados neste período. Esta época, de grande avanço tecnológico, passou a ser chamada de Idade do Bronze.

- Idade do Ferro - por volta de 3,5 mil anos atrás o homem já dominava muito bem a metalurgia, passando a fabricar o ferro, usando fornos em altas temperaturas. Com o ferro, o homem passou a desenvolver, principalmente, armas mais resistentes.

- A fabricação destes objetos de metais teve uma grande influência na agricultura, aumentando a produção. O arado de metal, enxada e outras ferramentas agrícolas rústicas foram criadas, facilitando assim o trabalho no campo.

- O domínio dos metais também possibilitou ao homem deste período a fabricação de utensílios domésticos (panelas, potes, facas, etc) e objetos de adorno e de arte. Nesta época, várias esculturas de bronze foram produzidas.

segunda-feira, 17 de julho de 2006

DO PODER LEGISLATIVO, EXECUTIVO, E FEDERATIVO DA REPÚBLICA

O poder legislativo é aquele que tem o direito de determinar o modo porque a força da república se deve empregar para preservar a sociedade e seus membros. Porém como aquelas leis que se devem executar constantemente, e cuja força deve continuar sempre, se podem fazer em pouco tempo; por isso não há necessidade de que o legislativo esteja sempre em ser, não tendo sempre que fazer; e como pode vir a servir de grande tentação para a fragilidade humana, apta a abarcar a si o poder que as mesmas pessoas que tem o poder de fazer leis, tenham também o poder de as executar, por meio do que se podem isentar da obediência às leis que fazem, e acomodá-las, não só na sua confecção, mas também na sua execução, à sua vantagem particular, e por este meio virem a ter interesses diversos dos do resto da sociedade, contra o fim da sociedade e do governo; por isso em repúblicas bem ordenadas, aonde o bem do todo é considerado como deve ser, o poder legislativo está nas mãos de várias pessoas, as quais, devidamente reunidas, tem de por si mesmas, ou juntas com outras, o poder de fazer leis, e logo que elas se acham feitas, o legislativo se dissolve, e então as mesmas pessoas que o compunham ficam sujeitas às leis que fizeram; o que é como hum vínculo novo e próximo que os obriga a terem o cuidado de fazer essas leis unicamente para o bem publico.

Porém como as leis, que são feitas de uma vez, e dentro em pouco tempo, tem uma força constante e duradoura, e precisam de execução, ou socorro perpétuo; por isso é necessário que haja hum poder sempre em ser que olhe pela execução das leis que estão feitas, e que estão em voga. E por isso acontece muitas vezes estar o poder legislativo separado do executivo.Há ainda em toda e qualquer república outro poder, que se pode chamar natural, porque é aquele que corresponde ao poder que todo o homem tinha naturalmente antes de entrar em sociedade. Porquanto, ainda que numa república os seus membros continuam a ser pessoas distintas, em relação uma à outra, e como tais são governadas pelas leis da sociedade; todavia em relação ao resto do género humano elas constituem um corpo, que ainda está, como dantes estavam todos os seus membros, no estado natural com o resto do género humano. Daqui vem, que as controvérsias que se suscitam ente qualquer homem da sociedade com aqueles que estão fora dela são manejadas pelo público, e uma ofensa feita a hum membro do seu corpo empenha o todo na sua reparação. De maneira que debaixo desta consideração, toda a sociedade política é um corpo que está no estado natural, em relação a todos os outros estados ou pessoas que estão fora da sua sociedade.Isto por conseguinte compreende o poder da guerra e da paz, de fazer ligas e alianças, e todas as transacções com todas as pessoas e sociedades fora da república, e pode-se chamar federativo, se quiserem. Com tanto que se entenda o que quero dizer, pouco me importa o nome.

Estes dois poderes, executivo e federativo, não obstante serem realmente distintos, todavia compreendendo um a execução das leis municipais da sociedade no interno, sobre tudo aquilo que a constitui; o outro o manejo da segurança e interesse do público no externo, com todos aqueles de quem pode receber benefício ou dano; estão todavia quase sempre unidos. E ainda que este poder federativo é de grande consequência para a república segundo a sua boa ou má administração, é com tudo muito menos capaz de ser dirigido por meio de leis antecedentes, fixas e positivas, do que o executivo; e por isso necessariamente se deve deixar à prudência e saber daqueles, em cujas mãos está, para o exercerem para bem do público; pois que as leis que dizem respeito aos súbditos entre si, sendo para dirigir as suas acções, podem muito bem precedê-las; mas aquilo que se deve fazer em relação aos estrangeiros, dependendo muito das suas acções, e da variação dos desígnios e interesses, deve deixar-se em grande parte à prudência daqueles, em cujas mãos está este poder, para ser manejado do melhor modo que eles poderem e para vantagem da república.

Ainda que, como já disse, o poder executivo e federativo de toda e qualquer sociedade politica podem ser realmente distintos entre si, todavia, eles mal podem estar separados, e depositados ao mesmo tempo em mãos de pessoas distintas. Porquanto, exigindo ambos eles a força da sociedade para o seu exercício, é quase impraticável o depositar-se a força da república em mãos distintas, e não subordinadas; ou que o poder executivo e federativo se dê a pessoas que possam obrar separadamente, por cujo meio a força pública estaria debaixo de diferentes mandos: o que daria lugar uma vez ou outra a causar desordem e ruína.

domingo, 9 de julho de 2006

DOS FINS DA SOCIEDADE POLÍTICA E DO GOVERNO.

Se o homem no estado natural é tão livre como se tem dito; se ele é senhor absoluto da sua própria pessoa e bens, igual ao maior, e sujeito a ninguém, para que fim cederá ele a sua liberdade? Para que fim renunciará ele este império, e se sujeitará ao domínio e administração doutro qualquer poder? Ao que muito facilmente se responde, que não obstante ter no estado natural um tal direito; o seu gozo todavia é muito incerto, e está exposto constantemente à invasão de outros: porquanto, sendo todos os homens tão soberanos como ele, seus iguais, e a maior parte deles não estritos observadores da igualdade e da justiça, o gozo da propriedade que ele possui nesse estado está muito arriscado, e muito exposto. Isto convida-o a deixar esta condição, a qual, não obstante a sua liberdade, está cheia de sustos e perigos contínuos; e não é sem razão que ele procura, e quer unir-se em sociedade com outros que já estão unidos, ou que tencionam unir-se, a fim de conservarem mutuamente as suas vidas, liberdades e bens, a que eu dou o nome genérico de propriedade.

Portanto, o grande e principal fim dos homens se unirem em sociedade, e de se constituírem debaixo de hum governo, é a conservação da sua propriedade; para cujo fim se exigem muitas coisas que faltam na estado natural.Em primeiro lugar, falta uma lei estabelecida, certa, e conhecida, tida e recebida pelo consenso comum como o estandarte do justo e injusto, e como uma medida comum para decidir todas as controvérsias entre eles. Porquanto, ainda que a lei natural é clara e inteligível a todas as criaturas racionais; todavia, os homens sendo movidos pelos seus interesses, e ignorantes dessa lei por falta de a estudarem, não estão em circunstâncias de a julgarem como lei obrigatória para com eles mesmos, na sua aplicação aos seus casos particulares.

Em segundo lugar, falta no estado natural um juiz conhecido e indiferente, que tenha autoridade de terminar todas as controvérsias segundo a lei estabelecida. Porquanto, sendo todo o homem nesse estado ao mesmo tempo juiz e executor da lei natural, e sendo parcial para consigo mesmo, a paixão e a vingança são muito susceptíveis de o arrebatarem demasiadamente em causa própria; bem como a negligência e falta de cuidado o pode tornar demasiadamente remisso em causa alheia.

Em terceiro lugar, no estado natural falta muitas vezes o poder para proteger e suportar a sentença quando justa, e para lhe dar a sua devida execução. Aqueles que forem ofendidos por alguma injustiça raras vezes falharão, uma vez que possam, em se fazer justiça por meio da força; uma resistência tal faz muitas vezes perigoso o castigo, e é frequentemente destrutiva para aqueles que o defendem.

Portanto, o género humano, não obstante todos os privilégios do estado natural, achando-se em má condição em quanto permanece nele, bem depressa procura a sociedade: e esta é a razão porque nós raras vezes achamos qualquer número de homens que vivam juntos nesse estado. As inconveniências a que eles aí estão expostos, em consequência do exercício irregular e incerto do poder que todo o homem tem de punir as transgressões dos outros, fá-los procurar o abrigo de leis estabelecidas, e o de um governo, a fim de segurarem as suas propriedades. Isto é o que os faz ceder espontaneamente o seu poder de punir, a fim dele ser unicamente exercido por aquelas pessoas, que para isso forem por eles escolhidas, e de ser dirigido somente por aquelas regras, que a sociedade, ou os autorizados por eles para esse fim estabelecerem. E é nisto em que consiste o direito original e o princípio do poder tanto legislativo como executivo, bem como o dos governos, e das mesmas sociedades.Porquanto, o homem no estado natural além da liberdade de procurar os prazeres inocentes, tem de mais a mais dois poderes.

O primeiro, é o de fazer tudo aquilo que ele julgar útil para a sua conservação e para a dos outros, não excedendo porém os limites da lei natural, em virtude da qual ele e todo o resto do género humano constituem uma sociedade, uma comunidade, distinta de todas as outras criaturas. E a não ser a corrupção e os vícios de homens degenerados, não haveria necessidade de outra; não haveria necessidade alguma de os homens se separarem desta grande comunidade natural, nem para se fazer, por meio de convenções positivas, associações menores e distintas.O outro poder que o homem tem no estado natural, é o de punir os crimes cometidos contra essa lei. Porem ele cede ambos estes poderes desde que se junta a uma sociedade privada, se me é lícito assim chamá-la, ou politica particular, e se incorpora a qualquer república separada do resto do género humano.O primeiro poder, viz.[isto é] de fazer tudo aquilo que ele julga útil para a sua conservação e do resto do género humano, ele o cede, tanto quanto o exigir a conservação dele e do resto da sociedade, para ser regulado por leis feitas pela sociedade, cujas leis limitam em muitos casos a liberdade que pela lei natural lhe competia.

Em segundo lugar, ele cede inteiramente o poder de punir, e empenha a sua força natural, (a qual ele dantes podia empregar na execução da lei natural, por sua própria autoridade, segundo o julgasse conveniente,) para auxiliar o poder executivo da sociedade, segundo a lei que ela tiver feito o exigir. Porquanto, estando ele agora num estado novo, onde há de gozar muitas conveniências provenientes do trabalha e assistência dos outros da mesma sociedade, bem como protecção de toda a sua força, ele também deve ceder daquela porção de liberdade natural, que ele tem para prover para si mesmo, segundo o exigir o bem, propriedade, e segurança, da sociedade; o que não somente é necessário, mas até justo; pois que os outros membros da sociedade fazem o mesmo.

Mas ainda que os homens, quando entram em sociedade, lhe cedem a igualdade, liberdade, e poder executivo que eles tinham no estado natural, a fim de ser disposto pelo legislativo, tanto quanto o exigir o bem da sociedade; todavia, cedendo cada um este poder unicamente com a intenção de preservar-se melhor a si, à sua liberdade, e propriedade, (pois que se não pode supor que criatura alguma racional queira mudar a sua condição com o intento de ficar pior,) o poder da sociedade, ou o legislativo. estabelecido por eles, nunca se pode supor estender-se a mais do que ao bem comum, mas está obrigado a segurar a propriedade de todos, providenciando para esse fim contra aqueles três defeitos acima mencionados, que fizeram o estado natural tão incómodo e arriscado. E assim, aquele que tiver o legislativo ou o poder supremo de alguma república, é obrigado a governar segundo as leis estabelecidas, promulgadas, e conhecidas pelo povo, e não por decretos extemporâneos, por juízes indiferentes e rectos para decidirem as controvérsias segundo essas leis, e empregarem a força da sociedade, se for no interior, unicamente com o fim de executar tais leis, ou se for no exterior, com o fim de prevenir ou de se indemnizar das ofensas externas, e de livrar a sociedade de excursões e invasões; e tudo isto não deve ter outro fim em vista senão a paz, segurança, e o bem público do povo.