Se o homem no estado natural é tão livre como se tem dito; se ele é senhor absoluto da sua própria pessoa e bens, igual ao maior, e sujeito a ninguém, para que fim cederá ele a sua liberdade? Para que fim renunciará ele este império, e se sujeitará ao domínio e administração doutro qualquer poder? Ao que muito facilmente se responde, que não obstante ter no estado natural um tal direito; o seu gozo todavia é muito incerto, e está exposto constantemente à invasão de outros: porquanto, sendo todos os homens tão soberanos como ele, seus iguais, e a maior parte deles não estritos observadores da igualdade e da justiça, o gozo da propriedade que ele possui nesse estado está muito arriscado, e muito exposto. Isto convida-o a deixar esta condição, a qual, não obstante a sua liberdade, está cheia de sustos e perigos contínuos; e não é sem razão que ele procura, e quer unir-se em sociedade com outros que já estão unidos, ou que tencionam unir-se, a fim de conservarem mutuamente as suas vidas, liberdades e bens, a que eu dou o nome genérico de propriedade.
Portanto, o grande e principal fim dos homens se unirem em sociedade, e de se constituírem debaixo de hum governo, é a conservação da sua propriedade; para cujo fim se exigem muitas coisas que faltam na estado natural.
Em segundo lugar, falta no estado natural um juiz conhecido e indiferente, que tenha autoridade de terminar todas as controvérsias segundo a lei estabelecida. Porquanto, sendo todo o homem nesse estado ao mesmo tempo juiz e executor da lei natural, e sendo parcial para consigo mesmo, a paixão e a vingança são muito susceptíveis de o arrebatarem demasiadamente em causa própria; bem como a negligência e falta de cuidado o pode tornar demasiadamente remisso em causa alheia.
Em terceiro lugar, no estado natural falta muitas vezes o poder para proteger e suportar a sentença quando justa, e para lhe dar a sua devida execução. Aqueles que forem ofendidos por alguma injustiça raras vezes falharão, uma vez que possam, em se fazer justiça por meio da força; uma resistência tal faz muitas vezes perigoso o castigo, e é frequentemente destrutiva para aqueles que o defendem.
Portanto, o género humano, não obstante todos os privilégios do estado natural, achando-se em má condição em quanto permanece nele, bem depressa procura a sociedade: e esta é a razão porque nós raras vezes achamos qualquer número de homens que vivam juntos nesse estado. As inconveniências a que eles aí estão expostos, em consequência do exercício irregular e incerto do poder que todo o homem tem de punir as transgressões dos outros, fá-los procurar o abrigo de leis estabelecidas, e o de um governo, a fim de segurarem as suas propriedades. Isto é o que os faz ceder espontaneamente o seu poder de punir, a fim dele ser unicamente exercido por aquelas pessoas, que para isso forem por eles escolhidas, e de ser dirigido somente por aquelas regras, que a sociedade, ou os autorizados por eles para esse fim estabelecerem. E é nisto em que consiste o direito original e o princípio do poder tanto legislativo como executivo, bem como o dos governos, e das mesmas sociedades.Porquanto, o homem no estado natural além da liberdade de procurar os prazeres inocentes, tem de mais a mais dois poderes.
O primeiro, é o de fazer tudo aquilo que ele julgar útil para a sua conservação e para a dos outros, não excedendo porém os limites da lei natural, em virtude da qual ele e todo o resto do género humano constituem uma sociedade, uma comunidade, distinta de todas as outras criaturas. E a não ser a corrupção e os vícios de homens degenerados, não haveria necessidade de outra; não haveria necessidade alguma de os homens se separarem desta grande comunidade natural, nem para se fazer, por meio de convenções positivas, associações menores e distintas.O outro poder que o homem tem no estado natural, é o de punir os crimes cometidos contra essa lei. Porem ele cede ambos estes poderes desde que se junta a uma sociedade privada, se me é lícito assim chamá-la, ou politica particular, e se incorpora a qualquer república separada do resto do género humano.
Em segundo lugar, ele cede inteiramente o poder de punir, e empenha a sua força natural, (a qual ele dantes podia empregar na execução da lei natural, por sua própria autoridade, segundo o julgasse conveniente,) para auxiliar o poder executivo da sociedade, segundo a lei que ela tiver feito o exigir. Porquanto, estando ele agora num estado novo, onde há de gozar muitas conveniências provenientes do trabalha e assistência dos outros da mesma sociedade, bem como protecção de toda a sua força, ele também deve ceder daquela porção de liberdade natural, que ele tem para prover para si mesmo, segundo o exigir o bem, propriedade, e segurança, da sociedade; o que não somente é necessário, mas até justo; pois que os outros membros da sociedade fazem o mesmo.
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