terça-feira, 5 de setembro de 2006

Tiradentes




O nome do líder da Inconfidência Mineira era Joaquim José da Silva Xavier. Nasceu na Vila de São Jose Del Rei (atual cidade de Tiradentes, Minas Gerais) em 1746, porém foi criado na cidade de Vila Rica (atual Ouro Preto).

Biografia

Exerceu diversos trabalhos entre eles minerador e tropeiro. Tiradentes também foi alferes, fazendo parte do regimento militar dos Dragões de Minas Gerais.

Junto com vários integrantes da aristocracia mineira, entre eles poetas e advogados, começa a fazer parte do movimento dos inconfidentes mineiros, cujo objetivo principal era conquistar a Independência do Brasil. Tiradentes era um excelente comunicador e orador. Sua capacidade de organização e liderança fez com que fosse o escolhido para liderar a Inconfidência Mineira. Em 1789, após ser delatado por Joaquim Silvério dos Reis, o movimento foi descoberto e interrompido pelas tropas oficiais. Os inconfidentes foram julgados em 1792. Alguns filhos da aristocracia ganharam penas mais brandas como, por exemplo, o açoite em praça pública ou o degredo.

Tiradentes, com poucas influências econômicas e políticas, foi condenado a forca. Foi executado em 21 de abril de 1792. Partes do seu corpo foram expostas em postes na estrada que ligava o Rio de Janeiro a Minas Gerais. Sua casa foi queimada e seus bens confiscados.

Conclusão : Tiradentes pode ser considerado um herói nacional. Lutou pela independência do Brasil, num período em que nosso país sofria o domínio e a exploração de Portugal. O Brasil não tinha uma constituição, direitos de desenvolver indústrias em seu território e o povo sofria com os altos impostos cobrados pela metrópole. Nas regiões mineradoras, o quinto (imposto pago sobre o ouro) e a derrama causavam revolta na população. O movimento da Inconfidência Mineira, liderado por Tiradentes, pretendia transformar o Brasil numa república independente de Portugal.

Para saber mais: livros e filmes

Filme :
Os Inconfidentes . Joaquim Pedro de Andrade. Brasil, 1972

Livros :
BENTES, Ivana. “ Independência ou Morte ”. Joaquim Pedro de Andrade: a revolução intimista. Rio de Janeiro : Relume-Dumará, 1996.
BERNADET, Jean-Claude. “O caso Tiradentes: notas ”. Piranha no mar de rosas . São Paulo: Nobel, 1982. RAMOS , Alcides Freire. “ A conjuntura política (1964-1972) e Os inconfidentes ”. Canibalismo dos fracos : cinema e história do Brasil. São Paulo: Edusp, 2002.

sábado, 2 de setembro de 2006

Paleolítico

O Paleolítico, também conhecido como Idade da Pedra Lascada, é a primeira fase da Idade da Pedra. Vai de 2 milhões a.C (época aproximada em que o homem fabricou o primeiro utensílio) até 10.000 a.C (início do Período Neolítico).


Este período da Pré-História se caracteriza pela fabricação de ferramentas (machados, lanças, cajados, facas, etc) e outros objetos de pedra, ossos e madeira. A vida neste período baseava-se na caça de animais, pesca e coleta de alimentos (frutos, folhas e raízes).

Os homens deste período eram nômades, ou seja, se deslocavam constantemente de um local para outro em busca de água e alimentos. Como precisavam deixar o local constantemente, buscavam moradias provisórias como, por exemplo, cavernas e vãos entre rochas.

A economia na fase do Paleolítico era de subsistência, ou seja, não acumulavam nem produziam para o comércio, mas apenas para a sobrevivência do grupo. Os bens de produção do grupo (ferramentas, utensílios e outros objetos) eram de propriedade coletiva.

Os homens se organizavam em pequenos grupos, cuja liderança era do mais forte e experiente. Aos homens cabia a tarefa de caçar, pescar e proteger o grupo. As mulheres ficavam com a função de preparar o alimento e cuidar dos filhos.

A comunicação neste período era baseada na emissão de pouca quantidade de sons (ruídos). Outra forma muita usada de comunicação foram as pinturas rupestres (desenhos feitos em paredes de cavernas). Através destes desenhos (arte rupestre) eles marcavam o tempo, trocavam experiências e transmitiam mensagens e sentimentos.



Uma das grandes descobertas do período foi a produção do fogo. Este era produzido através de dois processos. O mais rudimentar era a fricção de duas pedras sob um maço de palha seca. A faísca obtida incendiava a palha. Num segundo procedimento, mais elaborado, um graveto era girado sob o furo de uma madeira seca. Este procedimento, através do aquecimento, gerava calor que passava para a palha, provocando o fogo.

No Paleolítico, os homens já realizavam rituais funerários. Arqueólogos encontraram, em várias regiões, potes de cerâmica com restos mortais e objetos pessoais dentro de cavernas. Eram também realizados rituais religiosos com a utilização do fogo.

Hominídeos que viveram no Paleolítico: Australopitecos , Homo Habilis, Homo Erectus, Homo Sapiens, Homem de Neanderthal e Homem de Cro-Magnon.

sexta-feira, 25 de agosto de 2006

Hobbes e o pensamento político.

Hobbes quis fundar a sua filosofia política sobre uma construção racional da sociedade, que permitisse explicar o poder absoluto dos soberanos. Mas as suas teses, publicadas ao longo dos anos, e apresentadas na sua forma definitiva no Leviatã, de 1651, não foram bem aceites, nem por aqueles que, com Jaime I, o primeiro rei Stuart de Inglaterra, defendiam que «o que diz respeito ao mistério do poder real não devia ser debatido», nem pelo clero anglicano, que já em 1606 tinha condenado aqueles que defendiam «que os homens erravam pelas florestas e nos campos até que a experiência lhes ensinou a necessidade do governo.»

A justificação de Hobbes para o poder absoluto é estritamente racional e friamente utilitária, completamente livre de qualquer tipo de religiosidade e sentimentalismo, negando implicitamente a origem divina do poder.

O que Hobbes admite é a existência do pacto social. Esta é a sua originalidade e novidade.

Hobbes não se contentou em rejeitar o direito divino do soberanos, fez tábua rasa de todo o edifício moral e político da Idade Média. A soberania era em Hobbes a projecção no plano político de um individualismo filosófico ligado ao nominalismo, que conferia um valor absoluto à vontade individual. A conclusão das deduções rigorosas do pensador inglês era o gigante Leviatã, dominando sem concorrência a infinidade de indivíduos, de que tinha feito parte inicialmente, e que tinham substituído as suas vontades individuais à dele, para que, pagando o preço da sua dominação, obtivessem uma protecção eficaz. Indivíduos que estavam completamente entregues a si mesmos nas suas actividades normais do dia-a-dia.

Infinidade de indivíduos, porque não se encontra em Hobbes qualquer referência nem à célula famíliar, nem à família alargada, nem tão-pouco aos corpos intermédios existentes entre o estado e o indivíduo, velhos resquícios da Idade Média. Hobbes refere-se a estas corporações no Leviatã, mas para as criticar considerando-as «pequenas repúblicas nos intestinos de uma maior, como vermes nas entranhas de um homem natural». Os conceitos de «densidade social» e de «interioridade» da vida religiosa ou espiritual, as noções de sociabilidade natural do homem, do seu instinto comunitário e solidário, da sua necessidade de participação, são completamente estranhos a Hobbes.

É aqui que Hobbes se aproxima de Maquiavel e do seu empirismo radical, ao partir de um método de pensar rigorosamente dedutivo. A humanidade no estado puro ou natural era uma selva. A humanidade no estado social, constituído por sociedades civis ou políticas distintas, por estados soberanos, não tinha que recear um regresso à selva no relacionamento entre indivíduos, a partir do momento em que os benefícios consentidos do poder absoluto, em princípio ilimitado, permitiam ao homem deixar de ser um lobo para os outros homens. Aperfeiçoando a tese de Maquiavel, Hobbes defende que o poder não é um simples fenómeno de força, mas uma força institucionalizada canalizada para o direito (positivo), - «a razão em acto» de R. Polin - construindo assim a primeira teoria moderna do Estado.

Deste Estado, sua criação, os indivíduos não esperam a felicidade mas a Paz, condição necessária à prossecução da felicidade. Paz que está subordinada a um aumento considerável da autoridade - a do Soberano, a da lei que emana dele.

Mas, mesmo parecendo insaciável, esta invenção humana com o nome de um monstro bíblico, não reclama o homem todo. De facto, em vários aspectos o absolutismo político de Hobbes aparece como uma espécie de liberalismo moral. Hobbes mostra-se favorável ao desenvolvimento, sob a autoridade ameaçadora da lei positiva, das iniciativas individuais guiadas unicamente por um interesse individual bem calculado, e por um instinto racional aquisitivo.

quarta-feira, 16 de agosto de 2006

Lutero e o pensamento político da Reforma protestante.

A obra de Lutero Von weltlicher Oberkeit wie weit man ihr Gehorsam schuldig sei de 1523 é, talvez, a sua mais detalhada exposição das ideias políticas e que, como o título indica, lida com a autoridade temporal. Em alguns territórios alemães (Meissen e Baviera por exemplo) fora proibida a tradução do Novo Testamento e as pessoas intimadas a entregar os exemplares que possuíam. Nela o autor aconselha os seus fiéis a desobedecer às leis e a sofrer como os mártires. Para se justificar expõe a doutrina da instituição divina da autoridade temporal e a obrigação do cristão em desobedecer civilmente se a autoridade prevaricasse. A argumentação parte de Romanos,13,1 e segs., epístola endereçada a uma comunidade romano-cristã, vivendo sob autoridades pagãs, e a que um pouco de ordem nas suas más inclinações e atitudes apenas faria bem. No Apelo de 1520, considerara, em continuidade com a tradição medieval, que a função governamental se tornara uma das funções carismáticas do corpo místico; o estado cristão coincidia com a nação; a nobreza alemã podia ser chamada para levar a cabo a reforma nacional-cristã. As ideias de 1520 eram ainda reforma. Três anos depois tudo mudara. A individualização da experiência religiosa destruíra o equilíbrio entre os poderes carismáticos temporal e espiritual. O governante é um não-cristão que persegue os bons cristãos luteranos. Deve invocar-se a nova autoridade espiritual contra o poder temporal que se tornou não-cristão. Os fiéis devem seguir a Bíblia contra a Igreja e seus concílios. O poder espiritual tornara-se o Anticristo, o temporal era tirânico, o indivíduo estava entregue a si próprio. Situação insuportável? Mas levou mais de 100 anos a ser estabilizada. Neste sentido, 1523 é o fim da Idade Média.

Ao destruir-se o equilíbrio entre autoridades institucionais espiritual e temporal, todos os homens pertencem quer ao Reich Gottes (os fiéis) quer ao Reich der Welt cuja espada pune os actos malvados. Os cristãos não carecem da espada porque vivem em paz; mas devem respeitar o poder da espada porque é útil ao seu próximo. E assim é possível satisfazer dois senhorios, o reino de Deus e o reino do Mundo. Infelizmente não é fácil satisfazer a dois senhores. A civitas Dei e a civitas terrena de Agostinho não são reinos no tempo. Na história concreta existe Igreja e império. A Igreja representa a Civitas Dei mas boa parte dos seus membros pertencem à civitas terrena. A salvação é um dom divino imperscrutável. Lutero regressa ao significado de Tyconius. A ideia de Igreja é destruída pela doutrina que só a fé salva. Ser cristão é comprar a Bíblia de Lutero e seguir a consciência. A civitas dei torna-se demasiado fácil e visível. Ora a consciência de ser bom Cristão é muito fácil de surgir. Se aparece alguém que se considera bom cristão e que só pratica iniquidades que se lhe pode responder ? E se for um movimento de massas que pedem a abolição da autoridade temporal porque o reino de deus já chegou ? Poderiam sobrevir abusos da liberdade evangélica. A solução era remeter os abusadores para o redil do governo temporal. Mas se o governo temporal age mal ? Se interfere com os cristãos e os proíbe de ler as Bíblias que Lutero traduzira ? Deverá o cristão então resistir ? Em resumo, não há solução.

Quando a ordem institucional destruída fica à mercê do decisisonismo da consciência individual é a guerra de todos contra todos. A nova ordem terá que ser imposta às consciências rebeldes. Esta é origem da razão de estado, aceite pelas Igrejas. Mas de momento é só o princípio. A liberdade evangélica significava, por exemplo, o que vinha no III dos Doze Artigos dos servos camponeses revoltados (1525) um documento de inegável grandeza humana: «Tem sido costume até agora que os homens nos possuam como sua propriedade; e isto é lamentável vendo que Cristo nos redimiu a todos com o precioso derramamento do seu sangue, aos humildes bem como aos grandes, sem excepção de ninguém. Portanto é conforme às Escrituras que sejamos livres e assim o queremos ser». Que respondeu Lutero ? «Isto é tornar a liberdade cristã uma realidade totalmente carnal. Não tiveram também escravos Abraão e outros patriarcas ?.Este artigo tornaria todos os homens iguais e converteria o reino espiritual de Cristo num reino mundano e externo; e isso é impossível porque um reino mundano não pode ficar em pé a menos que nele exista a desigualdade, de modo a que uns sejam livres, outros presos, uns senhores e outros súbditos». Os camponeses não o escutaram, seguiram outra interpretação das Escrituras e o seu coração tomou a decisão da revolução social violenta. Em 1523 aconselhara no escrito Von weltlicher Oberkeit: «A heresia é um assunto espiritual que não pode ser cortado com o ferro, queimado com o fogo ou afogado em água». Em 1525 pediu aos nobres e aos cavaleiros para massacrar os heréticos. Os cavaleiros não se fizeram rogados. Foi o fim do sonho da Reforma através da palavra. Lutero viveu ainda 20 anos. Mas nada mais tinha para dizer. Em cerca de oito anos criara ideias decisivas para o decurso da história da consciência moderna e perante as quais o cisma Protestante é quase secundário.

Destruíra o núcleo da cultura espiritual cristã ao atacar a doutrina da fides caritate formata. Reduzira a fé a um acto de confiança ao retirar-lhe a intimidade da graça, sempre exposta às tentações do orgulho e da soberba. A consciência empírica da justificação pela fé cria uma ruptura na natureza humana.

Destruíra a cultura intelectual ocidental ao atacar a Escolástica aristotélica. Se o esplendor medieval foi escurecido pelas lentes torpes dos modernos, parte da responsabilidade deve-se a Lutero. A sua atitude anti-filosófica criou o padrão depois agravado por sucessivas gerações de intelectuais Iluministas, positivistas, marxistas e liberais.

A justificação sola fide arruina o equilíbrio da existência humana. A ideia do paraíso de amor industrioso transferiu a ênfase da vita contemplativa para a ideia de realização humana através de um trabalho e de um serviço útil. O homem confia em Deus; depois vai à vida. No nosso tempo, esta atrofia da cultura intelectual e espiritual degenera no pragmatismo do sucesso.

Fala-se de Lutero como de alguém que possuía as virtudes e os vícios típicos do alemão. Mas se pensarmos, para só referir teólogos, em Alberto Magno, Eckhardt, Tauler, Nicolau de Cusa e o anónimo de Frankfurt, então ele nada tinha de germânico. Criou certamente um tipo humano: o revoltado voluntarista que deseja impor a sua razão como o centro da ordem institucional.
A sua obra é a manifestação de uma personalidade bizarra cuja força vital o faz romper com a história e lançar-se sozinho contra o mundo. O seu apelo à acção directa contrasta com o contemptus vulgi de Maquiavel, o ascetismo e a pleonexia do intelectual de Erasmo e a ironia jocosa e amargura diplomática de Moro. Perante a força dramática da vontade luterana de violentar o juízo da história, tais autores fazem figuras de pobres revoltados. Força, porém, não é sinónimo de grandeza e não se pode pensar à maneira dos liberais do séc XIX que o sucesso seja sinal de valor. O grande indivíduo é um sintoma da ruptura da civilização. Por outro lado, os críticos de Lutero costumam ver a desordem espiritual e as carências do seu temperamento mas esquecem a degradação das tradições por acção de instituições e pessoas que já quase só representavam os defeitos. Ora as revoluções só se desencadeiam se houver condições de resposta das massas. No início da Reforma, a tradição degradara-se a tal ponto que um número cada vez maior de pessoas se sentia desligada de qualquer corpo místico. O indivíduo estava disponível para a violência renovadora. Entre os aspectos mais negativos da acção de Lutero conta-se a irresponsabilidade do apelo à autonomia de interpretação das escrituras e ao homo spiritualis. Faltava-lhe intuição intelectual e imaginação para ver as consequências. Mas esta deficiência que o cegava na teoria, robustecia a capacidade de agir; não entendia os enormes obstáculos iria criar. No aspecto positivo, era um observador excepcional e um talento administrativo. Conhecia os males do seu povo; tinha a moralidade e o bom senso de os aconselhar a diminuir as suas dependências; estimava os seus compatriotas: e conhecia perfeitamente o animal em que o homem se transforma se não for vigiado. Tinha todos os requisitos para ser um bom ministro num estado social-democrata. Mas passou à história convencional como o reformador da religião cristã.

quinta-feira, 10 de agosto de 2006

O pensamento de HOBBES segundo HANNAH ARENDT

O imperialismo deve ser considerado o primeiro estágio do domínio político da burguesia e não o último estágio do capitalismo. Sabe-se muito bem do pouco interesse demonstrado em exercer o poder pelas classes proprietárias pré burguesas, que se contentavam com qualquer tipo de Estado, desde que lhe pudessem confiar a protecção da sua propriedade. Na verdade, para elas o Estado havia sido sempre uma. força policial bem organizada. Essa falsa modéstia, contudo, teve a curiosa consequência de manter toda a classe burguesa fora do corpo político; antes de serem súbditos numa monarquia ou cidadãos numa república, eram essencialmente pessoas privadas. Essa privatividade e a preocupação principal de ganhar dinheiro haviam gerado uma série de padrões de conduta que encontram expressão nos provérbios – «nada é tão bem sucedido como o sucesso», «a força é o direito», «o direito é a conveniências, etc. -que são necessariamente frutos da experiência de uma sociedade competitiva.

Quando, na era do imperialismo, os comerciantes se tornaram políticos e foram aclamados como estadistas, enquanto os estadistas só eram levados a sério se falassem a língua dos comerciantes bem sucedidos e «pensassem em termos de continentes», essas práticas e mecanismos privados transformaram-se gradualmente em regras e princípios para a condução dos negócios públicos. É significativo que esse processo de reavaliação, iniciado no fim do século XIX e ainda em vigor, tenha começado com a aplicação de convicções burguesas aos negócios estrangeiros, e só lentamente tenha sido estendido à política doméstica. Assim, as nações interessadas mal perceberam que o desregramento que se introduzia na vida privada, e contra a qual a estrutura, política sempre tivera de defender-se a si própria e aos seus cidadãos, estava a pique de ser promovido ao posto de único princípio político publicamente reconhecido.

É importante observar que os modernos adeptos da força estão em completo acordo com a filosofia do único grande pensador que jamais tentou derivar o bem público a partir do interesse privado e que, em benefício deste bem privado, concebeu e esboçou uma Commonwealth cuja base e objectivo final é a acumulação do poder. Hobbes é, realmente, o único grande filósofo de que a burguesia pode, com direito e exclusividade, orgulhar-se, embora os seus princípios não fossem reconhecidos pela classe burguesa durante muito tempo. O Leviatã 1 de Hobbes expôs a única teoria política segundo a qual o Estado não se baseia em nenhum tipo de lei construtiva - seja divina, seja natural ou de contrato social - que determine o que é certo ou errado no interesse individual em relação às coisas públicas, mas sim nos próprios interesses individuais, de modo que «o interesse privado e o interesse público são a mesma coisa» 2.

É difícil encontrar um único padrão moral burguês que não tenha sido previsto pela inigualável magnificência da lógica de Hobbes. Ele pinta um quadro quase completo não do Homem, mas do homem burguês. uma análise que em trezentos anos não se tornou antiquada nem foi suplantada. «A razão... é nada mais que cálculo»; «um súbdito livre, uma vontade livre... (são) palavras... sem significado, isto é, um Absurdo». O homem é essencialmente uma função da sociedade e é, portanto, julgado de acordo com o seu «valor ou merecimento... o seu preço; ou seja, aquilo que se lhe daria pelo uso da sua força». Esse preço é constantemente avaliado e reavaliado pela sociedade, fonte da «estima dos outros», de acordo com a lei da oferta e da procura.

O poder, segundo Hobbes, é o controlo que permite estabelecer os preços e regular a oferta e a procura de modo que sejam vantajosas aos que detêm este poder. O indivíduo de início isolado, do ponto de vista da minoria absoluta, compreende que só pode atingir e realizar os seus alvos e interesses com a ajuda de certa espécie de maioria. Portanto, se o homem não é realmente motivado por nada além dos seus interesses individuais, o desejo do poder deve ser a sua paixão fundamental. É esse desejo de poder que regula as relações entre o indivíduo e a sociedade e todas as outras ambições, porquanto a riqueza. o conhecimento e a fama são as suas consequências.

Hobbes mostra que, na luta pelo poder, como na capacidade inata de o desejar, todos os homens são iguais, pois a igualdade do homem reside no facto de cada um, por natureza, ter suficiente potencialidade para matar um outro, já que a fraqueza pode ser compensada pela astúcia. A igualdade coloca todos os homens na mesma insegurança; daí a necessidade do Estado. A raison d'être do Estado é a necessidade de dar alguma segurança ao indivíduo, que se sente ameaçado por todos os seus semelhantes.

O traço crucial do retrato que Hobbes pinta do homem não está no seu pessimismo realista, porque se fosse verdade que o homem é um ser como Hobbes o quer, não seria capaz de fundar qualquer corpo político. Na verdade, Hobbes não consegue, nem realmente procura, incorporar definitivamente esse ser numa comunidade política. O Homem de Hobbes não deve qualquer lealdade ao seu país se este for derrotado, e é desculpado de qualquer traição caso venha a ser feito prisioneiro. Aqueles que vivem fora da comunidade (os escravos, por exemplo) não têm nenhuma obrigação para com os que a compõem e podem matar tantos quantos quiserem; mas, por outro lado, «nenhum homem tem a liberdade de resistir à espada da comunidade em defesa de outro homem, culpado ou inocente», o que significa que não existe nem espírito de companheirismo nem responsabilidade entre homens. O que os mantém juntos é um interesse comum, como por exemplo. «algum crime capital, pelo qual todos esperam ser punidos com a morte», tendo neste caso o direito «de se unir, ajudando-se e defendendo-se uns aos outros. ...Pois apenas defendem as suas vidas».

Assim, a participação em qualquer forma de comunidade é para Hobbes temporária e limitada e essencialmente não muda o carácter solitário e privado do indivíduo (que não tem «prazer, mas, pelo contrário, muito desgosto em manter companhia, quando não há força para obrigá-lo a tanto»), nem cria laços permanentes entre ele e os companheiros. O resultado é a inerente e confessada instabilidade da comunidade – Commonwealth – de Hobbes, cuja própria concepção prevê a sua ulterior dissolução: «quando numa guerra (estrangeira ou intestina) os inimigos obtêm a vitória final... então o Commonwealth é dissolvido, e cada homem tem a liberdade de se proteger a si mesmo». Esta instabilidade é surpreendente na teoria de Hobbes, na medida em que o seu objectivo primário é assegurar um máximo de segurança e estabilidade.

Seria uma grave injustiça a Hobbes e à sua dignidade como filósofo considerar esse retrato do homem como tentativa de realismo psicológico ou verdade filosófica. O facto é que Hobbes não está interessado nem num nem noutra, mas preocupa-se exclusivamente com a própria estrutura política e traça as feições do homem em função das necessidades do Leviatã. Para fins de argumento e convicção, apresenta o seu esboço político partindo do desejo de poder pelo homem e passando para o plano do corpo político adaptado a essa sede de poder.

Esse corpo político foi concebido para o uso da nova sociedade burguesa que emergia no século XVII, e esse quadro do homem é um esboço do novo tipo de homem que se adequava a ele. O Commonwealth é baseado na delegação da força, e não do direito. Adquire o monopólio de matar e dá em troca uma garantia condicional contra o risco de ser morto. A segurança é proporcionada pela lei, que emana directamente do monopólio de força do Estado (e não é estabelecida pelo homem segundo padrões humanos de «certo» e «errado»). Porque na lei do Estado não existe a questão de «certo» ou «errado», mas apenas a obediência absoluta, o cego conformismo da sociedade burguesa. E como essa lei flúi directamente do poder que ela torna absoluto, passa a representar a necessidade absoluta aos olhos do indivíduo que vive sob ela.

Despojado de direitos políticos, o indivíduo, para quem a vida pública e oficial se manifesta sob o disfarce da necessidade, adquire novo e maior interesse pela sua vida privada e pelo seu destino pessoal. Excluído da participação na gerência dos negócios públicos que envolvem todos os cidadãos, o indivíduo perde tanto o lugar a que tem direito na sociedade como a conexão natural com os seus semelhantes. Agora, só pode julgar a sua vida privada individual comparando-a com a dos outros, e as suas relações com os companheiros dentro da sociedade tomam a forma de concorrência. Numa sociedade de indivíduos, todos dotados pela natureza de igual capacidade de força e igualmente protegidos uns dos outros pelo Estado, que regula os negócios públicos e os problemas de convívio sob o disfarce da necessidade, apenas o acaso pode decidir quem vencerá 3.

De acordo com os padrões burgueses, aqueles que são completamente destituídos de sorte e não têm sucesso são automaticamente excluídos da competição, que é a essência da vida da sociedade. A boa sorte é identificada com a honra e a má sorte com a vergonha. Transferindo para o Estado os seus direitos políticos, o indivíduo delega nele também as suas responsabilidades sociais: pede ao Estado que o alivie do ónus de cuidar dos pobres, exactamente como pede protecção contra os criminosos. Não há mais diferença entre mendigo e criminoso ambos estão fora da sociedade. Os que fracassam perdem a virtude que a civilização clássica lhes legou: os que são infelizes já não podem apelar para a caridade cristã.

Hobbes isenta os que são excluídos da sociedade – os fracassados, os infelizes, os criminosos – de qualquer obrigação em relação ao Estado e à sociedade, se o Estado não cuida deles. Podem dar rédea solta ao seu desejo de poder, e são até aconselhados a tirar vantagem da sua capacidade elementar de matar, restaurando assim aquela igualdade natural que a sociedade esconde apenas por uma questão de conveniência. Hobbes prevê e justifica que os proscritos sociais se organizem em bandos de assassinos, como consequência lógica da filosofia moral burguesa.

Como a força é essencialmente apenas um meio para um fim, qualquer comunidade baseada unicamente na força entra em decadência quando atinge a calma da ordem e da estabilidade; a sua completa segurança revela que ela é construída sobre a areia. O poder só é capaz de garantir o status quo adquirindo mais poder; só pode permanecer estável ampliando constantemente a sua autoridade através do processo de acumulação de poder. O Commonwealth de Hobbes é uma estrutura vacilante que está sempre a precisar de ir em busca de novos esteios de fora; de contrário, ruiria imediatamente para a insensatez do caos de interesses privados de onde surgiu. Hobbes incorpora a necessidade de acumulação de poder à teoria do estado natural, à «condição de guerra perpétua» de todos contra todos, na qual os vários Estados mantêm em relação aos outros a posição que caracterizava os seus súbditos antes de se submeterem à autoridade da Commonwealth 4. Essa perene possibilidade de guerra garante à Commonwealth uma esperança de permanência, porque torna possível ao Estado aumentar o seu poder à custa de outros Estados.

Seria erróneo tomar pelo seu valor aparente a óbvia inconsistência entre o apelo de Hobbes a favor da segurança do indivíduo e a inerente instabilidade da sua Commonwealth. Novamente aqui ele tenta persuadir, apelar para certos instintos básicos de segurança que, como ele sabia muito bem, podiam sobreviver nos súbditos do Leviatã apenas sob a forma de absoluta submissão à força que «os intimida a todos», isto é, um medo esmagador e universal - que não é exactamente o sentimento básico do homem que se julga seguro. O ponto de partida de Hobbes é uma incomparável compreensão das necessidades políticas do novo corpo social da burguesia em ascensão, cuja crença fundamental num processo interminável de acumulação de propriedade estava a ponto de eliminar toda a segurança individual. Hobbes chegou às necessárias conclusões a partir da análise dos padrões de conduta social e económica quando propôs mudanças revolucionárias na constituição política. Esboçou o novo corpo político que corresponderia aos novos anseios e Interesses da nova classe. O que realmente conseguiu foi retratar o homem segundo os padrões de conduta da futura sociedade burguesa.

A insistência de Hobbes quanto ao poder como motor de todas as coisas humanas e divinas (até o reino de Deus sobre os homens «não provém de os ter criado... mas do Poder Irresistível») se devia à proposição, teoricamente indiscutível, de que a infindável acumulação de propriedade deve basear-se na infindável acumulação do poder. O correlativo filosófico da instabilidade inerente de uma comunidade baseada na força é a imagem de um processo histórico infindável que, para ser consistente com o constante aumento de poder, envolve inexoravelmente os indivíduos, os povos e, finalmente, toda a humanidade. O processo ilimitado de acumulação de capital necessita de uma estrutura política de «poder tão ilimitado» que possa proteger a propriedade crescente, tornando-a cada vez mais poderosa. Dado o fundamental dinamismo da nova classe social, é perfeitamente verdadeiro que «ela não pode garantir o poder e os meios de viver bem, que alcança num determinado instante, sem adquirir mais». A coerência dessa conclusão não é absolutamente afectada pelo facto de que, durante cerca de trezentos anos, não houve um soberano que «convertesse esta verdade especulativa em utilidade prática», nem uma burguesia com suficiente consciência política e maturidade económica para adoptar abertamente a filosofia do poder de Hobbes.

Este processo de constante acumulação de poder, necessário à protecção de uma constante acumulação de capital, criou a ideologia «progressivas dos fins do século XIX e prenunciou o aparecimento do imperialismo. Não a tola ilusão de um crescimento ilimitado de propriedade, mas a compreensão de que a acumulação de poder era o único modo de garantir a estabilidade das chamadas leis económicas, tomou irresistível o progresso. A noção de progresso do século XVIII, tal como era concebido na França pré-revolucionária, pretendia que a crítica do passado fosse um meio de domínio do presente e de controlo do futuro; o progresso culminava com a emancipação do homem. Mas essa noção tinha pouco ou nada em comum com a infindável evolução da sociedade burguesa, que não apenas não desejava a liberdade e autonomia do homem, mas estava pronta a sacrificar tudo e todos a leis históricas supostamente supra-humanas. «Aquilo a que chamamos progresso é (o) vento... [que] impele [o anjo da história] irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas enquanto o monte de ruínas diante de si se ergue até aos céus» 5. Somente no sonho de Marx de uma sociedade sem classes que, nas palavras de Joyce, faria a humanidade despertar do pesadelo da História, é que surge um vestígio último, embora utópico, do conceito do século XVIII.

O negociante de mentalidade imperialista, a quem as estrelas aborreciam porque não podia anexá-las, sabia que o poder organizado como finalidade em si geraria mais poder. Quando a acumulação de poder atingiu os seus naturais limites nacionais, a burguesia percebeu que apenas com uma ideologia de expansão e apenas com um processo económico que reflectisse o da acumulação de poder, seria possível colocar novamente o motor em funcionamento. Ao mesmo tempo, porém, quando parecia que o verdadeiro moto perpétuo havia sido descoberto, a atitude especificamente optimista da ideologia do progresso foi abalada. Não que alguém duvidasse da irresistibilidade do processo, mas muitos começaram a perceber aquilo que havia assustado Cecil Rhodes: que a condição humana e os limites do globo eram um sério obstáculo a um processo que, por um lado, não podia parar nem estabilizar-se e que, por outro lado, só podia provocar uma série de catástrofes destruidoras, quando atingisse esses limites.

Na época imperialista, a filosofia do poder tornou-se a filosofia da elite, que logo descobriu, e estava pronta a admitir, que a sede de poder só podia ser saciada pela destruição. Foi esta a causa essencial do seu niilismo (especialmente conspícuo na França do início do século XX e na Alemanha da década de Vinte), que substituía a superstição do progresso pela superstição da ruína, e pregava a aniquilação automática com o mesmo entusiasmo com que os fanáticos do progresso automático haviam pregado a irresistibilidade das leis económicas. Hobbes, o grande idólatra do Sucesso, tinha levado três séculos para ser bem sucedido. Isso foi em parte devido à Revolução Francesa, que, com a sua concepção do homem como legislador e citoyen, quase havia conseguido evitar que a burguesia desenvolvesse inteiramente a sua noção de história como processo necessário. Mas em parte foi devido também às implicações revolucionárias da Commonwealth, ao seu intrépido rompimento com a tradição ocidental, coisas que Hobbes não deixou de apontar.

Todo o homem e todo o pensamento que não é útil e não se conforma ao objectivo final de uma máquina cujo único fim é a geração e a acumulação de poder é um estorvo perigoso. Hobbes achava que, os livros dos «antigos gregos e romanos» eram tão «prejudiciais» como o ensinamento cristão do «Summum bonum... como é pronunciado nos livros dos velhos filósofos moralistas», ou a doutrina de que «tudo o que um homem faz contra a sua consciência é pecado», e de que as «leis são as regras do justo e do injusto». A profunda suspeita alimentada por Hobbes em relação a toda a tradição ocidental de pensamento político não nos surpreende, se lembrarmos que ele procurava nada menos que justificar a Tirania que, embora houvesse ocorrido muitas vezes na história do Ocidente, nunca havia sido homenageada com um fundamento. filosófico. Hobbes confessa orgulhosamente que o Leviatã é realmente um governo permanente de tirania: «a palavra Tirania significa nada mais nada menos que a palavra Soberania... Acho que tolerar o ódio declarado à Tirania é tolerar o ódio à comunidade em geral».

Por ser filósofo, Hobbes já podia perceber na ascensão da burguesia todas aquelas qualidades anti tradicionalistas da nova classe, que iriam levar três séculos para se desenvolver por completo. O seu Leviatã não se perdia em especulações ociosas a respeito de novos princípios políticos nem da velha busca da razão que governa a comunidade dos homens; era estritamente um «cálculo das consequências», que advêm da ascensão de uma nova classe na sociedade, cuja existência está essencialmente ligada à propriedade como um mecanismo dinâmico produtor de mais propriedade. A chamada acumulação de capital que deu origem à burguesia mudou o próprio conceito de propriedade e riqueza: estes já não. eram mais considerados como resultado da acumulação e da aquisição, mas sim o seu começo; a riqueza tornou-se um processo interminável de se ficar mais rico. A classificação da burguesia como classe proprietária é apenas superficialmente correcta, porquanto a característica dessa classe é que todos podem pertencer a ela, contanto que concebam a vida como um processo permanente de aumentar a riqueza, e considerem o dinheiro como algo sacrossanto que de modo algum deve ser usado como simples instrumento de consumo.

Contudo, a propriedade em si é sujeita ao uso e ao consumo e, portanto, diminui constantemente. A forma mais radical – e a única segura – de posse é a destruição, pois só possuímos para sempre e com certeza aquilo que destruímos. Os donos de propriedade que não consomem, mas continuamente procuram aumentar as suas posses, esbarram com um limite muito inconveniente: o facto lamentável de que os homens morrem. A morte é o verdadeiro motivo pelo qual a propriedade e a aquisição jamais podem tornar-se um princípio político verdadeiramente válido. Um sistema social baseado essencialmente na propriedade não pode levar a outra coisa senão à destruição final de toda a propriedade. A finitude da vida pessoal é um desafio tão sério à propriedade como fundamento social, quanto os limites do globo são um desafio à expansão como fundamento do sistema político. Por transcender os limites da vida humana, o crescimento automático e contínuo da riqueza além das necessidades e possibilidades de consumo pessoais, que é a base da propriedade individual, torna-se assunto público e sai da esfera da simples vida privada. Os interesses privados que, por sua própria natureza, são temporários, limitados pela duração natural da vida do homem, podem agora fugir para a esfera dos negócios públicos e pedir-lhes emprestado aquele tempo infinito necessário à acumulação contínua. Isto parece criar uma sociedade muito parecida com a das formigas e das abelhas, onde «o bem comum não difere do bem privado; e, naturalmente inclinadas para o benefício privado, consequentemente procuram o benefício comum».

Como, porém, os homens não são formigas nem abelhas, tudo não passa de uma ilusão. A vida pública assume um aspecto enganador quando aparenta constituir a totalidade dos interesses privados, como se esses interesses pudessem criar uma qualidade nova pelo simples facto de serem somados. Todos os chamados conceitos liberais de política (isto é, todas as noções políticas pré-imperialistas da burguesia) -como a concorrência sem limites, regulada por um secreto equilíbrio que provém, de modo misterioso, da soma total das actividades concorrentes; a busca de um «esclarecido interesse próprio» como virtude política; o progresso limitado baseado na simples sucessão dos acontecimentos – têm isto em comum: simplesmente adicionam vidas privadas e padrões de conduta pessoais e apresentam o resultado como leis de história, de economia ou de política. Mas os conceitos liberais, embora expressem a instintiva suspeita da burguesia e a sua inata hostilidade em relação aos negócios públicos, são apenas uma acomodação temporária entre os velhos padrões de cultura ocidental e a crença da nova classe na propriedade como principio dinâmico e automotivo. Os velhos padrões cedem à medida que a riqueza, crescendo automaticamente, passa realmente a substituir a acção política.

Embora nunca inteiramente reconhecido, Hobbes foi o verdadeiro filósofo da burguesia, porque compreendeu que a aquisição de riqueza, concebida como processo sem fim, só pode ser garantida pela tomada do poder político, pois o processo de acumulação violará, mais cedo ou mais tarde, todos os limites territoriais existentes. Previu que uma sociedade, que havia escolhido o caminho da aquisição contínua, tinha de engendrar uma organização política dinâmica capaz de levar a um processo contínuo de geração de poder. E, através de simples voo da imaginação, pôde até esboçar tanto os principais traços psicológicos do novo tipo de homem que se encaixaria em tal sociedade, quanto a tirania da sua estrutura política. Previu como necessária a idolatria do poder que caracteriza esse novo tipo humano, e pressentiu que ele se sentiria lisonjeado ao ser chamado animal sedento de poder, embora na verdade a sociedade o forçasse a renunciar a todas as suas forças naturais, virtudes e vícios, e fizesse dele o pobre sujeitinho manso que não tem sequer o direito de se erguer contra a tirania e que, longe de lutar belo poder, se submete a qualquer governo existente e não mexe um dedo nem mesmo quando o seu melhor amigo cai vítima de uma raison d'état incompreensível.

Assim, uma Commonwealth baseada no poder acumulado e monopolizado de todos os seus membros individuais torna todos necessariamente impotentes, privados das suas capacidades naturais e humanas. Degrada o indivíduo à condição de peça insignificante na máquina de acumular poder, livre para se consolar, se quiser, com pensamentos sublimes a respeito do destino final dessa máquina, construída de forma a ser capaz de devorar o mundo, se simplesmente seguir a lei que lhe é inerente.

O objectivo final de destruição dessa Commonwealth é pelo menos indicado na interpretação filosófica da igualdade humana como «igual capacidade» de matar. Vivendo com as outras nações «numa condição de guerra perpétua, sempre à beira do combate, com as suas fronteiras armadas e canhões assestados contra os vizinhos», não tem outra lei de conduta senão «a que melhor leve ao (seu) benefício», e gradualmente devorará as estruturas mais fracas até que chegue a uma última guerra «que dê a todos os homens a vitória ou a morte».

Com «vitória ou morte», o Leviatã pode realmente suplantar todas as limitações políticas provenientes da existência de outros povos e envolver toda a terra na sua tirania. Mas quando vier a última guerra e todos os homens tiverem recebido o seu quinhão, nenhuma paz final terá sido estabelecida na terra: a máquina de acumular poder, sem a qual a expansão contínua não teria sido possível, precisará de novo material para o devorar no seu infindável processo. Se a última Commonwealth vitoriosa não puder anexar os planetas, s6 poderá passar a devorar-se a si mesma, para começar novamente o infinito processo da geração de poder.

Notas:

1. Todas as citações que se seguem e às quais corresponda uma nota são do Leviatã.
É muito significativo que esta identificação de interesses coincida com a alegação totalitária de haver abolido as contradições entre os interesses públicos e os indivíduos (vide capítulo III do vol. III). Contudo, não se deve esquecer que Hobbes estava interessado principalmente em proteger os interesses privados alegando que, correctamente interpretados, eles eram também os interesses do corpo político, ao passo que, pelo contrário, os regimes totalitários proclamam a não existência da privatividade.

A promoção do acaso à posição de árbitro final da vida iria atingir o seu ponto mais alto no século XIX. Como resultado, surgiu um novo género de literatura, o romance que acompanhou o declínio do drama. Pois o drama perdeu o seu sentido, num mundo sem acção, enquanto o romance podia tratar adequadamente os destinos de seres humanos que eram quer vítimas da necessidade, quer favoritos da sorte. Balzac demonstrou todo o alcance do novo género e chegou a apresentar as paixões humanas como o destino do homem, sem vício nem virtude, nem razão, nem livre-arbítrio. Só o romance na sua completa maturidade, tendo interpretado e reinterpretado toda a gama dos temas humanos, podia pregar o novo evangelho da paixão do homem pelo seu próprio destino, que teve papel tão importante entre os intelectuais do século X.IX. Através dessa paixão, o artista e o intelectual tentavam traçar uma distinção entre si mesmos e os outros, proteger-se contra a desumanidade da boa e da má sorte, e desenvolveram todos os dons da sensibilidade moderna - pronta para o sofrimento, compreensão, desempenho de determinado papel - tão desesperadamente necessária à dignidade humana, que exige que um homem seja pelo menos uma vítima, se não puder ser outra coisa.
A noção liberal de um Governo Mundial baseia-se, como todas as noções liberais de poder político, no mesmo conceito de indivíduos que se submetem a uma autoridade central que os intimida a todos, excepto que, no caso, as noções tomam o lugar dos indivíduos. O Governo Mundial deve sobrepujar e eliminar a política autêntica, que consiste na justaposição de povos diferentes vivendo uns com os outros em pleno exercício do seu próprio poder.
Walter Benjamim em: Über den Begriff der Geschichte (Sobre o conceito da História) (publicado por Institut für Sozialforschung, Nova lorque. 1942, mimeografado). Os próprios imperialistas conheciam muito bem as implicações do seu conceito de progresso. O autor, que escrevia sob o pseudónimo de A. Carthill, funcionário inglês que havia servido na Índia e que é bem representativo da época, disse: «Deve-se sempre ter pena daqueles que são esmagados pelo carro triunfal do progresso» (op. cit., pág. 209).

domingo, 6 de agosto de 2006

HISTÓRIA DO BRASIL IMPÉRIO

Brasil Império é o período da história do Brasil entre a Independência em 1822 até a Proclamação da República em 1889. Divide-se entre o Primeiro Império, o Período Regencial e o Segundo Império. Com o advento desse período, cessa-se o título de Rei do Brasil.

Elevação a Império

Após a Guerra da Independência, em 1825, o título de Príncipe do Brasil foi desvinculado dos príncipes aspirantes ao trono português, passando esses a usar somente o título de Duque de Bragança. Nomeadamente, Pedro I do Brasil foi o último a deter ambos os dois títulos, tendo sido Príncipe Regente do Brasil por um curto período pouco antes da Independência. Dom Pedro, por sua vez, inicia a linhagem de imperadores do Brasil a partir de sua coroação como Imperador do Brasil na Capela Imperial, Rio de Janeiro, aos 12 de outubro de 1822. Contudo, apesar do título de Príncipe do Brasil, mais nomeadamente Príncipe Imperial do Brasil, vicejar até os dias de hoje, apenas Pedro de Bragança e seu filho detiveram o trono imperial.

Após a renúncia de Pedro I ao trono, inicia-se o Período Regencial, que vigora até que Pedro II atinja a maioridade e esteja apto a exercer o direito nato de ascenção ao trono.

Imperador Titular do Brasil – Dinastia de Bragança

Quando do término da Guerra da Independência do Brasil, foi estabelecido o Tratado do Rio de Janeiro aos 29 de agosto de 1825 entre Portugal e Brasil. Pelo tratado, a coroa portuguesa reconhecia a independência do antigo reino, mas reservava a D. João VI, pai de D. Pedro I, o título de Imperador do Brasil. O tratado, a princípio, anulava a norma anterior da Constituição brasileira de 1824, a qual proibia que o governante exercesse poder sobre Portugal e Brasil simultaneamente. Não obstante, D. João VI não foi o Imperador de facto, haja vista que não foi sagrado como tal, nem expediu qualquer ato político, e muito menos D. Pedro declarou-se ex-Imperador. A situação sui generis de haver dois Imperadores brasileiros durou pouco, pois sete meses depois D. João VI viria a falecer.

quinta-feira, 3 de agosto de 2006

Maquiavel e o pensamento político.

Maquiavel (1469-1527) é um dos mais originais pensadores do renascimento, uma figura brilhante mas também algo trágica. Durante os séculos XVI e XVII, o seu nome será sinónimo de crueldade, e em Inglaterra o seu nome tornou ainda mais popular o diminutivo Nick para nomear o diabo, não havendo pensador mais odiado nem mais incompreendido do que Maquiavel. A fonte deste engano é o seu mais influente e lido tratado sobre o governo, O Príncipe, um pequeno livro que tentou criar um método de conquista e manutenção do poder político.

A vida de Maquiavel cobriu o período de maior esplendor cultural de Florença, assim como o do seu rápido declínio. Este período, marcado pela instabilidade política, pela guerra, pelo intriga, e pelo desenvolvimento cultural dos pequenos estados italianos, assim como dos Estados da Igreja, caracterizou-se pela integração das rivalidades italianas no conflito mais vasto entre a França e a Espanha pela hegemonia europeia, que preencherá a última parte do século XV e a primeira metade do século XVI. De facto, a vida de Maquiavel começou no princípio deste processo - em 1469, quando Fernando e Isabel, os reis católicos, ao casarem unificaram as coroas de Aragão e Castela, dando origem à monarquia Espanhola.

Maquiavel era filho de um influente advogado florentino, e durante a sua vida viu florescer a cultura e o poder político de Florença, sob a direcção política de Lourenço de Médicis, o Magnífico. Veria também o crepúsculo do poder da cidade quando o filho de Lourenço e seu sucessor, Piero de Médicis, foi expulso pelo monge dominicano Savonarola, que criou uma verdadeira República Florentina. Quando Savonarola, um fanático defensor da reforma da Igreja, foi também ele expulso do poder e queimado, uma segunda república foi fundada por Soderini em 1498. Maquiavel foi secretário desta nova república, com uma posição importante e distinta. A república, entretanto, foi esmagada em 1512 pelos espanhóis que instalaram de novo os Médicis como governantes de Florença.

Maquiavel parece não ter tido uma posição política clara. Quando os Médicis retomaram o governo, continuou a trabalhar incansavelmente para cair nas boas graças da família. O que prova que, ou era extraordinariamente ambicioso, ou acreditava de facto no serviço do estado, não lhe importando o grupo ou o partido político que detinha as rédeas do governo. Os Médicis, de qualquer maneira, nunca confiaram inteiramente nele, já que tinha sido um funcionário importante da república. Feito prisioneiro, torturaram-no em 1513 acabando por ser banido para a sua propriedade em San Casciano, mas esta actuação dos Médicis não o impediu de tentar novamente ganhar as boas graças da família. Foi durante o seu exílio em San Casciano, quando tentava desesperadamente regressar à vida pública, que escreveu as suas principais obras: Os discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, O Príncipe, A História de Florença, e duas peças. Muitas destas obras, como O Príncipe, foram escritas com a finalidade expressa de conseguir uma nomeação para o governo dos Médicis.

A extraordinária novidade, tanto dos Discursos como do Príncipe, foi a separação da política da ética. A tradição ocidental, exactamente como a tradição chinesa, ligava tanto a ciência como a actividade política à ética. Aristóteles tinha resumido esta posição quando definiu a política como uma mera extensão da ética. A tradição ocidental, via a política em termos claros, de certo e errado, justo e injusto, correcto e incorrecto, e assim por diante. Por isso, os termos morais usados para avaliar as acções humanas eram os termos empregues para avaliar as acções políticas.

Maquiavel foi o primeiro a discutir a política e os fenómenos sociais nos seus próprios termos sem recurso à ética ou à jurisprudência. De facto pode-se considerar Maquiavel como o primeiro pensador ocidental de relevo a aplicar o método científico de Aristóteles e de Averróis à política. Fê-lo observando os fenómenos políticos, e lendo tudo o que se tinha escrito sobre o assunto, e descrevendo os sistemas políticos nos seus próprios termos. Para Maquiavel, a política era uma única coisa: conquistar e manter o poder ou a autoridade. Tudo o resto - a religião, a moral, etc. -- que era associado à política nada tinha a ver com este aspecto fundamental - tirando os casos em que a moral e a religião ajudassem à conquista e à manutenção do poder. A única coisa que verdadeiramente interessa para a conquista e a manutenção do poder manter é ser calculista; o político bem sucedido sabe o que fazer ou o que dizer em cada situação.

Com base neste princípio, Maquiavel descreveu no Príncipe única e simplesmente os meios pelos quais alguns indivíduos tentaram conquistar o poder e mantê-lo. A maioria dos exemplos que deu são falhanços. De facto, o livro está cheio de momentos intensos, já que a qualquer momento, se um governante não calculou bem uma determinada acção, o poder e a autoridade que cultivou tão assiduamente fogem-lhe de um momento para o outro. O mundo social e político do Príncipe é completamente imprevisível, sendo que só a mente mais calculista pode superar esta volatilidade.

Maquiavel, tanto no Príncipe como nos Discursos, só tece elogios aos vencedores. Por esta razão, mostra admiração por figuras como os Papa Alexandre VI e Júlio II devido ao seu extraordinário sucesso militar e político, sendo eles odiados universalmente em toda a Europa como papas ímpios. A sua recusa em permitir que princípios éticos interferissem na sua teoria política marcou-o durante todo o Renascimento, e posteriormente, como um tipo de anti-Cristo, como mostram as muitas obras com títulos que incluíam o nome anti-Maquiavel. Em capítulos como «De que modo os príncipes devem cumprir a sua palavra» (cap. XVIII) Maquiavel afirma que todo o julgamento moral deve ser secundário na conquista, consolidação e manutenção do poder. A resposta à pergunta formulada mais acima, por exemplo, é que:

«Todos concordam que é muito louvável um príncipe respeitar a sua palavra e viver com integridade, sem astúcias nem embustes. Contudo, a experiência do nosso tempo mostra-nos que se tornaram grandes príncipes que não ligaram muita importância à fé dada e que souberam cativar, pela manha, o espírito dos homens e, no fim, ultrapassar aqueles que se basearam na lealdade».

Pode ajudar na compreensão de Maquiavel imaginar que não está a falar sobre o estado em termos éticos mas sim em termos cirúrgicos. É que Maquiavel acreditava que a situação italiana era desesperada e que o estado Florentino estava em perigo. Em vez de responder ao problema de um ponto de vista ético, Maquiavel preocupou-se genuinamente em curar o estado para o tornar mais forte. Por exemplo, ao falar sobre os povos revoltados, Maquiavel não apresenta um argumento ético, mas cirúrgico: «os povos revoltados devem ser amputados antes que infectem o estado inteiro.»

O único valor claro na obra de Maquiavel é a virtú (virtus em Latim), que é relacionado normalmente com «virtude». Mas de facto, Maquiavel utiliza-a mais no sentido latino de «viril», já que os indivíduos com virtú são definidos fundamentalmente pela sua capacidade de impor a sua vontade em situações difíceis. Fazem isto numa combinação de carácter, força, e cálculo. Numa das passagens mais famosas do Príncipe, Maquiavel descreve qual é a maneira mais apropriada para responder a volatilidade do mundo, ou à Fortuna, comparando-a a uma mulher: «la fortuna é donna». Maquiavel refere-se à tradição do amor cortesão, onde a mulher que constitui o objecto do desejo é abordada, cortejada e implorada. O príncipe ideal para Maquiavel não corteja nem implora a Fortuna, mas ao abordá-la agarra-a virilmente e faz dela o que quer. Esta passagem, já escandalosa na época, representa uma tradução clara da ideia renascentista do potencial humano aplicado à política. É que, de acordo com Pico della Mirandola, se um ser humano podia transformar-se no que quisesse, então devia ser possível a um indivíduo de carácter forte pôr ordem no caos da vida política.

sábado, 29 de julho de 2006

DO PRINCIPIO DAS SOCIEDADES POLÍTICAS.

Sendo todos os homens, como já se disse, naturalmente livres, iguais, e independentes, ninguém pode ser posto fora deste estado e sujeito ao poder o politico doutro, sem o seu próprio consentimento. O único meio por onde qualquer se priva da sua liberdade natural, e se liga à sociedade civil, é convindo com outros homens em se ajuntar e unir com eles em sociedade civil, a fim de haver segurança, paz, e sossego entre eles, e obterem um gozo seguro das suas propriedades, e uma segurança maior contra qualquer que não pertence à mesma sociedade. Isto qualquer número de homens o pode fazer; pois que não prejudica a liberdade dos outros, os quais se deixam na mesma liberdade do estado natural em que estavam. Todas as vezes que qualquer número de homens der um tal consentimento para se fazer uma sociedade civil ou governo, eles por esse facto ficam incorporados e formados em corpo político, aonde a maioria tem direito a governar.

Porquanto, quando qualquer número de homens estabelece com consentimento de cada indivíduo uma sociedade civil, eles por esse facto constituem essa sociedade como um corpo com poder de obrar como tal, o que é unicamente pela vontade e determinação da maioria: porquanto, sendo o consentimento dos seus indivíduos unicamente o que dirige a sociedade, é necessário que essa sociedade, que é um corpo só, se mova para aquela parte pura onde a maior força o conduz, a qual é o consentimento da maioria: do contrário, é impossível poder obrar, ou continuar a ser um corpo, uma comunidade, em que consentiu cada individuo que entrou nela; portanto, todos estão obrigados em consequência desse consentimento a ser governados pela maioria. E por isso nós vemos que nas assembleias autorizadas a obrar por meio de leis positivas, quando a lei positiva que os autoriza não determina número certo, o acto da maioria passa como acto do todo, e por conseguinte decide como se tivesse pela lei natural e da razão o poder do todo.

Portanto todo o homem pelo acto de convir com outros em formar um corpo político debaixo dum governo, se obriga para com cada um dos dessa sociedade a se submeter à determinação da maioria, e de ser governado por ela; ou alias este pacto original, por meio do qual ele se incorpora com outros numa sociedade, não valeria coisa alguma, e não seria pacto, se ele tivesse sido deixado livre, e sujeito a nenhuns outros vínculos ou obrigações que aquelas que ele tinha no estado natural. Que aparência pois podia haver dum pacto ou promessa, se as determinações da sociedade o não obrigassem a mais do que àquilo que ele mesmo julgasse conveniente, e a que tivesse prestado o seu consentimento? Isto seria ter uma liberdade tão grande como a que ele tinha antes de ter feito o pacto, ou como tem qualquer outro no estado natural, o qual se pôde submeter e consentir a quaisquer dos seus actos, se o julgar a propósito.

Porquanto, se o consentimento da maioria se não receber como o acto do todo, e não abranger a todo o indivíduo, nenhuma outra coisa, que não seja o consentimento de cada indivíduo, pode fazer o acto do todo: porém um consentimento tal é imediato ao impossível, considerando nós as enfermidades, e as imensas ocupações que num número ainda mesmo muito menor que o duma república, necessariamente apartam a muitos da assembleia publica. E se nós acrescentar-mos a isto a variedade de opiniões e a contrariedade de interesses, que existem inevitavelmente em todos as corporações de homens, o entrar para a sociedade debaixo de tais cláusulas seria somente como a entrada de Catão no teatro, unicamente para tornar a sair. Uma constituição tal como esta faria o poderoso leviatã duma duração mais curta do que as criaturas as mais fracas; e não o deixaria passar além do dia em que nasceu: o que se não pode supor enquanto não julgar-mos que as criaturas racionais desejam e constituem sociedades unicamente para se dissolverem: porquanto, aonde a maioria não pôde dirigir o resto, aí não podem obrar como um corpo só, e por consequência se dissolverão imediatamente outra vez.

Por conseguinte, deve-se entender que todo aquele que sair do estado natural para se unir em sociedade civil, cede todo o poder que for necessário aos fins para que ele se uniu à maioria da sociedade, salvo se eles convierem expressamente em algum número maior do que o da maioria. E isto acontece pelo simples acto de convir em se unir em sociedade política, o que vem a ser todo o pacto que há, ou que é preciso entre os indivíduos que fazem ou compõem uma república. Portanto, aquilo que dá princípio e com efeito constitui uma sociedade politica, não é outra coisa mais do que o consentimento de qualquer número de homens livres, que tem o uso da razão para se unirem e incorporarem numa sociedade tal. E é isto o que, e somente isto o que deu ou podia dar principio a todo e qualquer governo legitimo.

Acho duas objecções feitas contra isto.
Primeira. Que na historia se não acham exemplos duma companhia de homens independentes e iguais entre si que se encontrassem, e que começassem e estabelecessem um governo desta maneira.Segunda. Que é contra todo o direito que homens assim fizessem, por isso mesmo que nascendo todos os homens debaixo dum governo, eles se lhe devem submeter e não têm a liberdade de começar um de novo.

Em resposta à primeira direi, que não é de admirar que a história nos dê uma relação tão limitada dos homens que viverão juntos no estado natural. As inconveniências daquele estado, o amor e a necessidade da sociedade, logo que uniu alguns deles, imediatamente os incorporou, se é que eles tinham intenção de continuar a viver juntos. E se acaso nós não podemos supor que os homens estivessem jamais no estado natural, por ter-mos poucas notícias deles nesse estado, podemos igualmente supor que os exércitos de Salmanassar ou de Xerxes nunca foram meninos, por isso mesmo que temos pouca notícia deles antes de serem homens e estarem incorporados em exércitos. O governo é em toda a parte anterior à memoria dos homens, e as letras de ordinário não se introduzem num povo senão depois de ter existido por muito tempo em sociedade civil, e de ter cuidado noutras artes mais necessárias para a sua segurança, bem estar, e abundância: e é então que ele começa a indagar a história dos seus fundadores, e a examinar a sua origem, quando tem sobrevivido à sua memória: pois acontece às repúblicas, bem como às pessoas particulares, o ignorarem, normalmente as suas próprias origens e infâncias: e se sabem alguma coisa da sua origem, elas o devem às memórias acidentais que outros têm conservado a tal respeito. E aquelas que nós temos do começo das diferentes formas de governos que tem havido, à excepção da dos Judeus, aonde o mesmo Deus se interpôs imediatamente, e que não favorece de maneira alguma o domínio paternal, são todas ou exemplos claros dum principio tal qual eu mencionei , ou ao menos. tem sinais evidentes disso.

Na verdade, é bem notável a inclinação de negar a matéria evidente do facto quando se não conforma com a hipótese daquele que não quer conceder que a origem de Roma e Veneza começou pela união dalguns homens livres e independentes uns dos outros, e entre os quais não havia sujeição ou superioridade alguma natural. E se dermos crédito ao que diz Joseph Acosta, em muitas partes da América não havia qualidade alguma de governo. «Há grandes e evidentes conjecturas,» diz ele, «que estes homens,» falando dos do Peru, «por muito tempo não tiveram nem Reis nem Repúblicas, mas andavam em bandos, como andam hoje em dia na Florida os Cheriquanas, os do Brasil, e outras muitas nações, que não têm Reis certos, mas, segundo o exige a paz ou a guerra, assim escolhem os seus capitães segundo lhes parece,» lv. 1. c.25. Se se disser que aí todo o homem nasceu sujeito a seu pai, ou ao chefe da sua família, que a sujeição que um filho deve a seu pai não o privou da liberdade de se unir aquela sociedade política que lhe pareceu; isso já está demonstrado. Mas, seja como for, é claro que estes homens eram com efeito livres: e não obstante qualquer superioridade que alguns políticos constituiriam presentemente em qualquer deles, eles mesmos não a pretendiam; mas eram todos iguais por consentimento, até que pelo mesmo consentimento estabeleceram governantes sobre si mesmos. De maneira que todas as suas sociedades políticas procederam duma união voluntária, e do consentimento mútuo de homens que obraram livremente na escolha de seus governadores e forma do seu governo.

E eu espero que se concederá que aqueles que se apartaram de Esparta com Palantus, mencionados por Justino, lv. 3. c. 4, foram homens livres e independentes uns dos outros, e que estabeleceram por seu próprio consentimento um governo sobre si mesmos. Tenho pois referido vários exemplos tirados da história, de povos livres que estando no estado natural, e encontrando-se, se incorporaram, e principiaram uma república. E se a falta de tais exemplos servir de argumento para provar que o governo não principiou, nem podia principiar assim, julgo que os defensores do império paternal fariam melhor em não a mencionar do que, servir-se dela contra a liberdade natural. Porquanto, se é que eles podem referir outros tantos exemplos tirados da história, de governos começados no direito paternal, julgo (ainda que segundo a boa razão, um argumento do que tem sido, para o que por direito devia ser, não tem grande força,) que se podia, sem grande risco, ceder-lhes a causa. Se me fosse porém permitido aconselhá-los sobre o caso, eles fariam bem em não examinar demasiadamente na origem dos governos o modo porque eles principiaram de facto, a fim de não descobrirem na fundação da maior parte deles alguma coisa muito pouco favorável ao intento que eles favorecem, e a um poder tal qual eles defendem.

Tendo nós porém claramente mostrado que os homens são naturalmente livres, e os exemplos tirados da história mostrando-nos que os governos do mundo que começaram em paz tinham firmado o seu princípio nesse alicerce, e foram feitos por consentimento do povo; pouco lugar pode haver para duvidar em que consiste o direito, ou qual tem sido a opinião ou prática do género humano sobre a primeira formação dos governos.

Eu não negarei, que se nós indagar-mos a origem das repúblicas tanto quanto a história nos encaminha, geralmente as acharemos debaixo do governo e administração dum só homem. E também me inclino a crer que aonde uma família era assaz numerosa para subsistir por si só, e que continuou a viver toda junta sem se unir com outras, como acontece frequentemente naquela partes aonde há muito terreno e pouco povo, o governo começou comummente no pai. Porquanto, tendo o pai pela lei natural o mesmo poder que tem qualquer outro homem para punir, segundo ele julgar que é justo, quaisquer ofensas contra essa lei, podia por essa razão punir os seus filhos transgressores, mesmo depois de serem homens e estarem fora da sua tutela; e é muito provável que eles se sujeitassem ao seu castigo, e que todos eles se unissem alternadamente com ele contra o transgressor, dando-lhe por este meio o poder de executar a sua sentença contra qualquer transgressão, e fazendo-o deste modo o legislador e governante de todos os que estavam em conjunção com a sua família. Ele era aquele em quem mais se podia confiar; pois que a afeição paternal segurava a sua propriedade e interesses debaixo de seu cuidado; e o costume de lhe obedecer na sua infância inclinava-os antes à sujeição do pai do que à doutro qualquer. Porquanto se é preciso que eles tenham um homem que os governe, pois que o governo mal se pôde evitar entre homens que vivem juntos, quem mais provável e próprio para o ser do que aquele que é o seu pai comum, excepto se a negligência, crueldade, ou qualquer outro defeito da mente ou do corpo, o fez incapaz para isso? Mas quando acontecesse morrer o pai, e deixar o seu herdeiro imediato com pouca ou nenhuma capacidade para governar, por falta de idade, saber, coragem, ou quaisquer outras qualidades; ou quando algumas famílias se ajuntaram e consentiram em continuar a viver juntas; não se pode duvidar que então eles se serviram da sua liberdade natural para eleger aquele que julgaram o mais hábil, e o mais capaz para os governar bem. Semelhante a isto achamos aqueles povos da América, que, vivendo fora do alcance das espadas vencedoras e crescente dominação dos dois grandes impérios do Peru e México, gozaram a sua liberdade natural, e ainda que, coetereis paribus, eles comummente preferem o herdeiro do seu Rei defunto; todavia se eles o acham fraco ou incapaz, então não fazem caso dele, e elegem para seu director o homem mais robusto, o mais bravo, e o mais capaz.

Portanto, não obstante ver-mos, se examinarmos tanto quanto poder-mos as memórias acerca do princípio da povoação do mundo, e a História das nações, que o governo estava comummente num só homem; todavia isso não torna fútil aquilo que eu armo, viz. que o princípio da sociedade politica depende dos indivíduos consentirem em se unir e fazer uma sociedade; a qual, quando eles assim e acham incorporados, pode estabelecer aquela forma de governo que melhor lhe parecer. Sendo isto porem o que deu lugar a que os homens se enganassem, e julgassem que o governo era naturalmente monárquico, e que pertencia ao pai, não será fora, de propósito examinar-mos neste lugar a razão porque no principio o povo escolheu geralmente esta forma de governo ; e ainda que fosse talvez a preeminência do pai o que lhe deu lugar na primeira instituição dalgumas republicas, e que no principio instituiu o poder num só homem; todavia é claro que a razão porque se continuou com a forma do governo duma única pessoa não era por atenção ou respeito à autoridade paternal; visto que todas as monarquias pequenas, que são quase todas elas, foram quase no seu principio comummente electivas, ou pelo menos em algumas ocasiões.

No principio pois, o governo que o pai exercia sobre os seus meninos tendo-os acostumado ao governo dum só homem, e ensinando-lhes que ele, quando se exercia com cuidado e habilidade, com afabilidade e amor para com os que lhe estão sujeitos, era suficiente para procurar e dar aos homens toda a felicidade politica que eles procurarão na sociedade; não é para admirar que eles escolhessem, e naturalmente estabelecessem aquela forma de governo, à qual eles tinham estado acostumados desde a sua infância, e que por experiência tinham achado não só cómoda como também segura. E se acrescentar-mos a isto, que a monarquia sendo simples e a mais clara para os homens, a quem nem a experiência tinha instruído sobre as formas de governo, nem a ambição ou arrogância do império tinha ensinado a se acautelarem das usurpações da prerrogativa, ou das inconveniências do poder absoluto; não era de admirar que eles não cuidassem muito em pensar sobre os meios de restringir quaisquer exorbitâncias daqueles a quem tinham dado autoridade sobre si, e de pôr em equilíbrio o poder do governo, constituindo algumas das suas partes em diversas mãos., Eles ainda não tinham sentido a opressão do domínio tirânico, nem o espírito do século, nem as suas possessões, ou maneira de viver, (o que pouco motivo dava à cobiça ou ambição,) lhes deu motivo algum para o temer ou prevenir: e por isso não é de admirar que eles se constituíssem debaixo duma tal forma de governo, a qual não somente era, como já disse, a mais clara e simples, mas também a mais própria para a sua condição e estado presente, que tinha mais necessidade de defesa contra as ofensas e invasões externas do que de multiplicidade de leis. .A igualdade de uma simples e humilde maneira de viver, limitando os seus desejos dentro dos estreitos limites da pequena propriedade de cada um, causou poucas controvérsias, e por isso não eram precisas muitas leis para as decidir, nem muitos funcionários para superintender os processos, ou fazer executar a justiça, aonde havia poucas ofensas e poucos ofensores. E como se não pôde deixar de supor que entre aqueles que se estimam mutuamente a ponto de se unirem em sociedade há algum conhecimento e amizade, e alguma confiança uns nos outros; por isso o seu primeiro cuidado e pensamento não podia ser senão sobre o modo porque eles se deviam segurar contra a força externa: e por conseguinte era-lhes natural o constituírem-se debaixo daquela forma de governo, que melhor lhes pudesse servir para esse fim; e escolherem o homem mais sábio e o mais bravo para os conduzir nas suas guerras, e capitaneá-los contra os seus inimigos; no que consistia principalmente o seu governo.

Porquanto, nós vemos que os Reis dos Índios da América são, o que é ainda uma amostra dos primeiros séculos da Ásia e da Europa, enquanto os habitantes eram demasiadamente poucos para o país, e a falta do povo e do dinheiro não incitou os homens a alargar as suas possessões de terreno, nem causou disputas por maiores extensões de herdades, pouco mais que generais de seus exércitos; ; e ainda que eles na guerra comandam com poder absoluto; todavia em casa e em tempo de paz exercem uma jurisdição muito limitada, e tem uma soberania muito moderada; pois que de ordinário as resoluções de paz e guerra estão ou no povo ou num concelho; ainda que a guerra, a qual não admite a pluralidade de governantes, se devolve naturalmente por si mesma à única autoridade do Rei.

E assim, até mesmo em Israel, a principal ocupação dos seus juízes e primeiros Reis parece ter sido a de capitães na guerra e chefes de seus exércitos, o que (além do que se declara nas palavras, «saindo e entrando diante do povo,» o que era para marchar para a guerra, e depois para casa, à frente das forças,) claramente se vê da história de Jefté. Os Amonitas fazendo a guerra a Israel, os Gaaladitas com medo mandam a Jefté um bastardo da sua família, que eles tinham expulso, para estipular com ele, se ele queria assisti-los contra os Amonitas, e para o fazer o seu chefe; o que eles fazem nestas palavras, «e o povo fê-lo seu cabeça e capitão,» [«O povo nomeou-o chefe e comandante», na tradução contemporânea] Juízes XI, 11 2, o que era, segundo parece, o mesmo que ser juiz. «E ele julgou Israel» [ou «Jefté foi juiz em Israel durante seis anos»] Juízes XII, 7, isto é, era o seu capitão-general, «seis anos.» Assim quando Joatão exprobra aos Sechemitas a obrigação que eles deviam a Gedeão, o qual tinha sido o seu juiz e director, ele diz-lhes, «ele bateu-se por vós, arriscou grandemente a sua vida, e vos libertou do poder de Madiã,» [«O meu pai lutou por vós e até arriscou a vida para vos livrar do poder de Madiã.»] Juízes IX, 17. Nada se menciona dele senão aquilo que ele fez como general; e com efeito isso é tudo o que se acha na sua história, ou na de qualquer dos outros juízes. E Abimelec é o que com particularidade é chamado Rei, ainda que quando muito era unicamente seu general. E no tempo em que os filhos Israel, estando enfadados da má conduta dos filhos de Samuel, desejarão hum Rei, «à semelhança de todas as nações, para os julgar, marchar à sua frente, e dirigir as suas batalhas,» [«seremos também como as outras nações: o nosso rei governar-nos-á, irá à nossa frente para comandar as nossas guerras.»] 1.º Livro de Samuel VIII, 20. Deus concedendo-lhes o seu desejo, diz a Samuel, «Eu vos mandarei um homem, e tu o ungirás para ser capitão do meu povo Israel, a fim de que ele possa livrar o meu povo do poder dos Filisteus,» [«vou mandar-te um homem da terra de Benjamim. Tu ungi-lo-ás como chefe do meu povo Israel, e ele libertará o povo do poder filisteu«] 1 Sam IX, 16, como se a única ocupação dum Rei tivesse sido a de capitanear os seus exércitos, e pelejar em sua defesa; e tanto assim que no acto da sua inauguração, lançando sobre ele um vaso de azeite, ele declara a Saúl que «o Senhor o tinha ungido para ser capitão da sua herança,» [«Eis o sinal de que Javé te ungiu como chefe da sua herança»] cap. X. ver. 1. E por isso aqueles que, depois de Saúl ter sido solenemente escolhido e saudado por seu Rei pelas tribos em Mispah, estavam com repugnância de o aceitar por seu Rei, não fazem outra objecção senão esta, «Como é que este homem nos há de salvar ?» [«Como é que este indivíduo nos poderá salvar»] ver. 27, como se eles dissessem, «Este homem é incapaz de ser nosso Rei, não tendo nem habilidade bastante, nem perícia da guerra para nos poder defender.» E quando Deus se resolveu a transferir o governo para David, é nestas palavras, «Mas agora o teu reinado não há de continuar: o Senhor procurou-lhe hum homem da sua escolha, e o Senhor lhe ordenou de ser capitão do seu povo,» [«Agora, porém, o teu reinado não se firmará. Javé encontrou um homem conforme o seu coração e nomeou-o chefe do seu povo»] cap. XIII, ver. 14. Como se toda a autoridade de Rei não consistisse em outra coisa senão o de ser general: e por isso as tribos que se tinham unido à família de Saúl, e oposto ao reinado de David, quando vieram a Hebron com termos de submissão a ele, elas dizem-lhe, que alem doutras razões que elas tinham para se lhe submeterem como a seu Rei, ele com efeito era o seu Rei no tempo de Saúl, e que por isso elas não tinham razão alguma para agora deixarem de o receber como tal. «Também,» dizem elas, «noutro tempo, quando Saúl era nosso Rei, tu foste o que nos conduzistes para fora, e que nos trouxeste para Israel; e o Senhor te disse, tu sustentarás o meu povo Israel, e serás o capitão de Israel.

Portanto, quer uma família chegasse, por degraus a fazer uma república, e a autoridade paternal continuasse no filho mais velho, crescendo cada um por sua vez debaixo dela, e submetendo-se-lhe tacitamente, a sua facilidade e igualdade não ofendendo a pessoa alguma, todos se acomodaram, até que o tempo pareceu tê-la confirmado, e estabelecido o direito de sucessão por prescrição: quer várias famílias, ou os descendentes de várias famílias, a quem o acaso, vizinhança, ou ocupação juntou, constituindo todos uma sociedade, a falta dum general, cuja conduta os pudesse defender na guerra contra os seus inimigos, e a grande confiança, a inocência e sinceridade daquela pobre mas virtuosa época, (tais são quase todas aquelas que principiam governos, cuja duração porém é sempre curta,) que os homens tinham uns nos outros, fizesse com que os primeiros principiantes de republicas dessem geralmente a administração a hum só homem, sem mais limitação ou restrição expressa do que aquela que a natureza da coisa e fita do governo exigia: é certo que o primeiro que no princípio entregou a administração a uma pessoa só, não lha confiou senão para o bem e segurança publica, e para esse fim comummente a usaram nas infâncias das repúblicas. E se aqueles que tinham esta administração não tivessem assim feito, as sociedades principiantes não podiam ter subsistido: sem uns tais pais criadores, afáveis e cuidadosos do bem público, todos os governos teriam perecido com as fraquezas e enfermidades da sua infância, e o mesmo Príncipe teria perecido em pouco tempo juntamente com o povo.

Porém, ainda que a idade de ouro (antes que a ambição vã, e, amor sceleratus habendi, a depravada concupiscência tivesse pervertido as mentes humanas no erro do verdadeiro poder e honra) tinha mais virtude, e por consequência melhores governantes, bem como súbditos menos viciosos; e não havia então prerrogativa que oprimisse o povo; nem por conseguinte disputa alguma sobre privilégio para diminuir ou restringir o poder do magistrado; e por isso nenhuma contenda entre os directores e o povo acerca dos governantes ou governo; todavia, nas idades futuras 3 quando a ambição e luxúria queria reter e aumentar o poder, faltando aos fins para que ele foi dado, e, auxiliada pela lisonja, ensinou aos Príncipes a ter interesses distintos e separados dos de seu povo, os homens então julgaram necessário examinar com mais cuidado a origem e direitos do governo; e de excogitar meios para restringir a exorbitância, e prevenir os abusos daquele poder, que eles tinham confiado nas mãos doutrem unicamente para o seu próprio bem, mas que se usava e empregava em seu prejuízo.

Portanto, é muito provável que o povo, que era naturalmente livre, e que por seu consentimento próprio ou se sujeitou ao governo de seu pai, ou de diferentes famílias se uniu debaixo dum governo, constituísse geralmente a administração nas mãos dum só homem, e escolhesse o governo duma única pessoa, sem ao menos limitar ou regular o poder por meio de condições expressas; pois que o julgou bastantemente seguro na sua honestidade e prudência; não obstante ele nunca ter sonhado que a monarquia era jure divino, o que nós nunca ouvimos entre o género humano, senão depois que a divindade deste ultimo século no-lo revelou; nem ter jamais reconhecido no poder paternal o direito de domínio, ou a base de todo o governo. Portanto isto é assaz para provar, que até onde a historia nos esclarece, nós temos razão para concluir, que todo o governo que teve princípios pacíficos foi fundado no consentimento do povo: digo pacíficos, porque em outro lugar terei a ocasião de falar da conquista, a qual é tida por alguns como hum meio de principiar os governos.

A outra objecção que eu acho proposta contra o princípio das sociedades politicas é esta, viz.
Que nascendo todos os homens debaixo dum governo qualquer, é impossível que quaisquer deles estivessem livres em tempo algum, e em liberdade de se unir uns com os outros, e começar hum de novo, ou que chegassem em tempo algum a poder erigir um governo legítimo.Se acaso isto é um bom argumento, pergunto como é que se introduziram tantas monarquias legítimas? Porquanto, se qualquer, debaixo desta suposição, for capaz de me mostrar um único homem, que em qualquer século do mundo estivesse livre para principiar uma monarquia legitima; eu me obrigo a mostrar-lhe outros dez homens livres com liberdade de se unir e principiar hum governo novo debaixo duma forma monárquica, ou de qualquer outra: pois que é evidente, que se alguém há, nascido debaixo do domínio doutrem, que seja tão livre que tenha o direito de governar outros num império novo e distinto; todo aquele que é nascido debaixo do domínio doutro pode ser igualmente tão livre como ele, e pôde por consequência vir a ser hum governante ou súbdito dum governo distinto e separado. Portanto, segundo este princípio, ou todos os homens, nascidos de qualquer maneira, são livres, ou então não há no mundo senão hum Príncipe, e um governo legítimo. E em tal caso, aqueles que fazem a objecção não tem mais nada a fazer do que mostrar-nos simplesmente quem é esse Príncipe e esse governo: e logo que o tiverem feito, eu não duvido que então todo o género humano convirá em lhe obedecer.

Não obstante ser uma resposta suficiente para a objecção deles o mostrar, que ela os envolve nas mesmas dificuldades que envolve aqueles contra quem eles a usam; todavia, eu me esforçarei a patentear mais alguma coisa a fraqueza deste argumento.

Todos os homens, dizem eles, nascem debaixo dum governo; e por isso não podem ter a liberdade de principiar hum de novo. Todo o homem nasce sujeito a seu pai, ou a seu príncipe; e por isso está debaixo do vínculo perpétuo de sujeição e obediência. É bem claro que o género humano sem seu próprio consentimento nunca reconheceu nem considerou tal sujeição natural em que ele nasceu, ou em respeito a um, ou em respeito ao outro, como uma sujeição a ele e a seus herdeiros. Porquanto, não há na história tanto profana como sagrada exemplos mais frequentes do que aqueles dos homens se apartarem da obediência e jurisdição do governo debaixo de que nasceram, ou da família e sociedade em que foram educados, e de estabelecerem governos novos em outros lugares; donde procederam tantas repúblicas pequenas; as quais foram sempre aumentando, enquanto houve espaço bastante, até que o mais forte, ou o mais afortunado, absorveu o mais fraco; e essas grandes repúblicas desfazendo-se outra vez, constituíram de novo domínios menores. O que tudo são depoimentos contra a soberania paternal, e provam claramente que não foi o direito natural que estabeleceu no princípio os governos; visto que era impossível que sobre essa base pudessem ter havido tantos domínios pequenos: tudo deveria ser uma única monarquia universal, se os homens não tivessem tido a liberdade de se separar das suas famílias e do governo, fosse ele qual, fosse, que estava estabelecido, e de constituir repúblicas e governos distintos, segundo eles julgaram conveniente.

Esta tem sido a prática do mundo desde o seu princípio até hoje. E o ser nascido presentemente debaixo de estabelecidas e antigas sociedades políticas, que estabeleceram leis e formas de governo, não impede mais a liberdade do género humano, do que se ele fosse nascido nos bosques entre os desenfreados habitantes que neles andam vagueando. Porquanto, aqueles que nos querem persuadir que o acto de nascer-mos debaixo dum governo nos sujeita naturalmente a ele, e que não temos direito ou pretensão alguma à liberdade do estado natural, não tem outra razão a dar, excepto a do poder paternal, (a que nós já respondemos) senão que nossos pais ou progenitores cederam a sua liberdade natural, e que por esse facto se obrigaram a si mesmos e à sua posteridade a uma sujeição perpétua, ao governo, a que eles mesmos se submeteram. É verdade que todo o homem está obrigado a cumprir com os pactos e promessas que fez por si; mas não pode por meio de pacto algum obrigar a seus filhos ou posteridade: porque, sendo o seu filho, quando já homem, tão livre como o pai, ele não tem mais direito a ceder a liberdade do filho do que a doutro qualquer. Ele pode na verdade anexar à terra, que possui como súbdito de alguma república, condições tais, que obriguem a seu filho a pertencer a essa república, uma vez que ele queira desfrutar as possessões que foram de seu pai; pois que sendo essas possessões propriedade de seu pai, ele pode dispor delas segundo lhe agradar.

E isto é o que geralmente tem dado lugar a se errar sobre este assunto; porque, não permitindo as repúblicas o desmembramento de parte alguma de seus domínios, nem que os outros, que não pertencem à sua sociedade, a possuam, o filho de ordinário não pode desfrutar os bens de seu pai senão debaixo das mesmas condições com que este os desfrutou, i. e. fazendo-se membro da sociedade; por meio do que, ele fica tão sujeito ao governo que aí acha estabelecido, como qualquer outro súbdito dessa república. E assim, sendo o consentimento dos homens livres nascidos debaixo de um governo, o qual é o que unicamente os faz seus membros, prestado por cada um em separado, segundo cada um chega a ter a idade, e não simultaneamente por todos; os homens não reparam nisso, e julgando que não há tal consentimento, ou que não é necessário, concluem que eles são naturalmente súbditos, logo que são homens.

É claro porém que os mesmos governos o entendem doutra maneira: eles não pretendem ter poder sobre o filho, por o terem sobre o pai, nem têm as crianças como seus súbditos, por os seus pais o serem. Se um súbdito Inglês tiver em França um filho duma Inglesa, de quem é ele súbdito? Não do Rei da Inglaterra; porque ele necessita de licença para ser admitido aos privilégios de súbdito Inglês; nem do Rei da França; porque se o fosse, que direito tinha seu pai a tirá-lo de lá, e a educá-lo segundo lhe agradar? E quem é que jamais foi julgado como traidor ou desertor, se ele deixou ou pelejou contra um país, por ter simplesmente nascido nele de pais que aí eram estrangeiros? Portanto, é claro, não só pela prática dos mesmos governos como também pela lei da recta razão, que um filho não nasce súbdito de país ou governo algum. Ele está debaixo da tutela e autoridade de seu pai até que chegue a idade da discrição; e então ele é um homem livre, e tem a liberdade de se sujeitar àquele governo que ele quiser, e de se unir ao corpo político que lhe agradar. Porquanto se o filho de um Inglês nascido em França é livre, e pode assim fazer, é claro que o acto de seu pai ser um súbdito deste reino o não obriga a coisa alguma; nem tão pouco pacto algum dos seus antepassados. E qual é então a razão porque seu filho não há de ter a mesma liberdade, ainda. que ele nasça em qualquer outra parte? Visto que o poder que um pai tem naturalmente sobre seus filhos é o mesmo aonde quer que eles nasçam; e que os vínculos da obrigação natural não estão demarcados pelos limites positivos dos reinos e repúblicas.

Sendo todo o homem, como já se demonstrou, naturalmente livre, e nada sendo capaz de o sujeitar a poder algum terrestre senão o seu próprio consentimento, deve-se considerar, que é o que se deve julgar como uma declaração suficiente do consentimento dum homem para o sujeitar ás leis de qualquer governo. Há uma distinção comum entre o consentimento tácito e o expresso, o que dirá respeito ao nosso caso presente. Ninguém duvida que o consentimento expresso de qualquer homem que entra para qualquer sociedade o faz hum membro perfeito dessa sociedade, um súbdito desse governo. A dificuldade está em saber o que é que se deve ter como um consentimento tácito, e até que ponto obriga, i. e. até que ponto é que se deve julgar que qualquer consentiu, e se submeteu a algum governo, não tendo ele praticado expressões algumas de consentimento. E a isto direi eu, que todo o homem que tem alguma possessão, ou usufruto de qualquer parte dos domínios de algum governo, nos manifesta por esse facto um consentimento tácito, e está tão obrigado à obediência das leis desse governo durante tal usufruto como qualquer outro dessa sociedade ; quer essa sua possessão consista em terra, para ele e seus herdeiros perpetuamente, ou unicamente num aposento por uma semana; quer consista em viajar livremente pela estrada: e com efeito esta sujeição estende-se a tanto quanto é a estada de qualquer dentro dos territórios desse governo.

Para melhor entender-mos isto, devemos lembrar-nos que todo o homem, quando se incorpora nalguma república, lhe anexa e sujeita igualmente aquelas possessões que ele tem, ou que poderá vir a ter, e que já não pertencem a outro governo. Porquanto seria uma contradição directa o entrar qualquer em sociedade com outros a fim de segurar e regular a propriedade, e supor todavia que a sua terra, cuja propriedade deve ser regulada pelas leis da sociedade, havia de ficar isenta da jurisdição daquele governo a que ele mesmo, o proprietário da terra, está sujeito. Portanto, aquele mesmo acto que qualquer pratica para unir a sua pessoa, que dantes era livre, a alguma república; esse mesmo une igualmente as suas possessões, que dantes eram livres, à mesma república, e tanto a pessoa como a possessão se constituem sujeitas ao governo e domínio dessa república enquanto existe. Por isso, todo aquele que depois dum tal acto possuir, por herança, compra, permissão, ou por outras quaisquer vias, qualquer parte da terra que estiver anexa, e pertença aos domínios dessa república, deve recebê-la com a condição que lhe está anexa ; a qual vem a ser, a de se submeter ao governo da república, debaixo de cuja jurisdição ele se acha, tanto quanto o está qualquer súbdito dela.

Porém, como o governo tem uma jurisdição directa unicamente sobre a terra, e se estende ao seu possuidor, (antes dele se ter com efeito incorporado à sociedade,) somente enquanto ele a habita e desfruta; a obrigação que tem qualquer, em virtude de tal usufruto, de se submeter ao governo, principia e acaba com o usufruto; de maneira que em qualquer tempo que o proprietário, que não deu ao governo senão um tal consentimento tácito, deixar, por doação, venda, ou por outra qualquer maneira, a dita possessão, tem a liberdade de se ausentar, e de incorporar-se a qualquer outra república, ou de convir com outros em principiar uma de novo, in vacuis locis, em qualquer parte do mundo que eles achem livre e desocupada. Pelo contrário porem, aquele que uma vez prestou o seu consentimento, por meio de qualquer convenção ou declaração expressa, para pertencer a alguma república, está perpétua e indispensavelmente obrigado a ser e permanecer inalteravelmente sujeito a ela, e nunca mais pode estar na liberdade do estado natural; excepto se por alguma calamidade o governo a que ele estava sujeito vem a dissolver-se, ou se ele for excluído por algum acto público.
122. O acto porém dum homem se sujeitar ás leis dum país qualquer, de viver sossegadamente, e gozar de privilégios e protecção a sombra delas não o faz membro dessa sociedade: isso é somente uma protecção local e homenagem devida a todos e da parte daqueles que, não estando em estado de guerra, entram no território pertencente a um governo qualquer, a todas as partes do qual se estende a força das suas leis: porem isto não constitui um homem membro dessa sociedade, ou um súbdito perpétuo dessa república, mais do que constituiria hum homem sujeito a outro, em cuja família ele julgou conveniente habitar por algum tempo; ainda que ele, durante a sua estada era obrigado a condescender com as leis, e a sujeitar-se ao governo que aí achou: e assim nós vemos que o acto dum estrangeiro viver toda a sua vida debaixo doutro governo, e de gozar os seus privilégios e protecção, não obstante estar ele obrigado, mesmo em consciência, a submeter-se à sua administração, tanto quanto o está qualquer estrangeiro naturalizado, não o constitui súbdito ou membro dessa república. Nada, senão uma convenção positiva, pacto, ou promessa expressa, pode fazer o homem um membro ou súbdito de uma republica. Esta é a minha opinião acerca do princípio das sociedades políticas, e do consentimento que torna hum homem membro de uma república.

quarta-feira, 26 de julho de 2006

DA SUBORDINAÇÃO DOS PODERES DE UMA REPÚBLICA.

. Ainda que numa república estabelecida, sustentando-se sobre a sua própria base, e obrando segundo a sua própria natureza, que é, obrando para conservação da sociedade, não pode haver mais do que um poder supremo, que é o legislativo, ao qual os outros estão e devem estar subordinados; todavia, o legislativo sendo tão somente hum poder fiduciário, que deve obrar para certos fins, fica ainda no povo um poder supremo para remover ou alterar o legislativo, todas as vezes que achar que o legislativo obra em contrário à confiança que nele colocou. Porquanto, sendo todo o poder que é dado como delegação para se obter um fim, limitado por esse mesmo fim, todas as vezes que esse fim for manifestamente desprezado ou oposto, a confiança necessariamente se deve perder, e o poder devolver-se para as mãos daqueles que o deram, os quais o podem colocar novamente onde julgarem mais conveniente para seu sossego e segurança. E por isso a sociedade retêm perpetuamente um poder supremo para se salvar das tentativas e desígnios de qualquer corpo, até mesmo dos seus legisladores, todas as vezes que eles forem tão loucos ou tão perversos, que meditem e executem desígnios contra as liberdades e propriedades do súbdito pois que não tendo homem algum, ou sociedade de homens, o poder de entregar a sua conservação, e por conseguinte os meios de a obter, à vontade absoluta e domínio arbitrário doutrem; todas as vezes que qualquer intentar constitui-los debaixo duma tal condição de servidão, eles terão sempre o direito de conservar aquilo que lhes não é permitido ceder, e de se desfazerem daqueles que invadem esta lei fundamental, sagrada, e inalterável, da própria conservação, para a qual eles entraram em sociedade. E portanto pode-se dizer a este respeito que a sociedade é sempre o poder supremo, não o considerando porém debaixo duma forma qualquer de governo; pois que este poder do povo nunca pode ter lugar em quanto o governo não for dissolvido.

Em todos os casos, em quanto o governo subsiste, o legislativo é o poder supremo. Porquanto, aquele que pode dar leis a outro, deve necessariamente ser seu superior; e como o legislativo não é legislativo da sociedade, senão pelo direito que tem de fazer leis para todas as partes, e para todos os membros da sociedade, prescrevendo regras às suas acções, e dando poder para a sua execução, aonde elas são transgredidas; por isso o legislativo deve necessariamente ser o supremo, e todos os outros poderes, em quaisquer membros ou partes da sociedade que se achem, derivados dele, e seus subordinados.

Naquelas repúblicas em que o legislativo não está sempre em ser, e onde o executivo está devem obediência senão à vontade pública da sociedade.O poder executivo colocado em qualquer outra parte que não seja uma pessoa que tem também quinhão no legislativo, é visivelmente subordinado e responsável ao mesmo legislativo e pode ser mudado e deposto a aprazimento; de maneira que não é o poder supremo executivo, que está isento da subordinação, mas sim o poder supremo executivo investido num, que tendo hum quinhão no legislativo, não tem hum legislativo superior e distinto a quem seja subordinado e responsável em mais do que ele mesmo concordar; de maneira que ele não está mais subordinado do que julgar próprio, o que facilmente se pode concluir que será bem pouco. Não necessitamos falar doutros poderes ministeriais e subordinados, que se contêm numa república, pois que são tão multiplicados e tão variados, segundo os diversos costumes e constituições das diferences republicas, que é impossível dar-se uma conta particular deles todos. Basta dizer-se deles para o nosso objecto presente, que nenhum deles tem autoridade alguma, alem daquela que lhes é delegada por comissão e concessão positiva, e todos eles são responsáveis a algum outro poder na república.

Não é necessário, nem mesmo conveniente, que o legislativo esteja sempre em ser, mas é absolutamente necessário que o poder executivo o esteja; por isso mesmo que não há sempre necessidade de se fazer leis novas, mas há sempre necessidade de se executarem as leis que estão feitas. Quando o legislativo entrega o poder da execução das leis que ele fez, em outras mãos, ainda tem poder para o reassumir dessas mãos, quando tiver causa para isso, e para punir qualquer «má administração contra as leis. O mesmo acontece também a respeito do poder federativo, sendo este e o executivo ambos ministeriais e subordinados ao legislativo, que, numa república bem ordenada, como já se demonstrou, é o poder supremo. Supondo-se também neste caso que o legislativo consta de diversas pessoas (porquanto se for uma pessoa única, não pode deixar de estar sempre em ser, e por conseguinte, como suprema, terá naturalmente o poder supremo executivo juntamente com o legislativo), elas podem ajuntar-se e exercer o seu poder legislativo nas estações marcadas, ou pela sua constituição original, ou pelo seu próprio adiamento, ou aliás quando lhe agradar, se nenhum destes casos tiver tempo marcado, ou se não houver outro meio prescrito para as convocar. Porquanto, o poder supremo achando-se depositado nelas pelo povo, está sempre nelas, e podem exerce-lo quando lhes agradar, excepto se pela sua constituição original estão limitados a certas épocas, ou se por um acto do seu poder supremo elas se adiaram para certo tempo; e logo que chega esse tempo, elas tem direito de se ajuntar, e trabalhar de novo.

Se o legislativo, ou qualquer parte dele, constar de representantes eleitos pelo povo por aquela vez somente, e que depois tornam para o seu estado ordinário de súbditos, não ficando com quinhão algum na legislatura senão por uma nova eleição; este poder de eleger deve também ser exercido pelo povo, ou em certas ocasiões demarcadas, ou então quando ele é ordenado para isso: e neste último caso, o poder de convocar o legislativo está, ordinariamente no executivo, o qual tem uma destas duas limitações enquanto ao tempo: que ou a constituição original exige que eles se ajuntem e trabalhem em certos intervalos, e então o poder executivo não faz mais do que dar ministerialmente algumas direcções para a sua eleição e reunião, segundo as formas devidas: ou então é deixado à sua prudência o chamá-los por meio de novas eleições, quando as ocasiões ou exigências do público requerem a reforma de leis antigas, ou precisam de leis novas ou reparação, ou prevenção de quaisquer inconveniências, que existem ou ameaçam o povo.

Pode-se aqui perguntar, que é que acontecerá se o poder executivo, estando de posse da força da república, fizer uso dessa força para impedir a reunião e os trabalhos do legislativo, quando a constituição original ou as exigências publicas o requererem? Ao que respondo, que ao uso da força para com o povo sem ter autoridade, e o obrar em contrário aos poderes que tem quem assim faz, constitui um estado de guerra com o povo, o qual tem direito a reassumir o seu legislativo no exercício do seu poder. Porquanto, tendo criado o legislativo com o fim dele exercer o poder de fazer leis ou em tempos certos e determinados ou quando houver necessidade; todas as vezes que ele for impedido por alguma força de fazer aquilo que é tão necessário para a sociedade, e em que consiste a segurança e conservação do povo, este tem direito a removê-lo por meio da força. Em todos os estados e condições, o verdadeiro remédio para a força empregada sem autoridade, é opor-lhe a força. O uso da força sem autoridade constitui sempre aquele que a usa num estado de guerra, como o agressor, e o sujeita a ser tratado como tal.

O poder de convocar e dissolver o legislativo, conferido ao executivo, não lhe dá superioridade sobre o legislativo; pois que este poder não é mais do que um depósito fiduciário, colocado nele para a segurança do povo, em algum caso, que a incerteza e mutabilidade dos negócios humanos não tenha podido determinar por uma regra certa e fixa. Porquanto, não sendo possível que os primeiros fundadores do governo antevissem os acontecimentos futuros duma maneira tal, que os habilitasse a prefixar uns períodos tão exactos de duração e regresso ás assembleias do legislativo, para todos os tempos futuros, que pudesse corresponder exactamente a todas as exigências da república; o melhor remédio que se podia achar para este defeito, era confiar isto à prudência dum que estivesse sempre presente, e que tivesse a seu cargo o vigiar pelo bem público. As reuniões constantes e frequentes do legislativo, e suas prolongadas assembleias sem necessidade, não podiam deixar de ser pesadas ao povo, e com o tempo deviam necessariamente produzir inconveniências muito perigosas; e todavia a mudança repentina dos negócios pode algumas vezes ser tal que necessite do seu socorro imediato. Qualquer demora que haja no seu ajuntamento pode pôr em perigo o público, e também algumas vezes os seus afazeres podem ser tantos, que o tempo marcado para a sua sessão seja demasiadamente curto para os seus trabalhos, e prive o publico daquele benefício que unicamente se pode conseguir da sua madura deliberação. Que é o que poderia então fazer-se neste caso afim de prevenir que a sociedade não esteja exposta em tempo algum a perigo iminente, duma ou doutra maneira, por meio de intervalos e períodos fixos, marcados para a reunião e trabalhos do legislativo, senão o confiá-lo à prudência dalguns, que estando presentes, e ao facto do estado dos negócios públicos, possam usar desta prerrogativa para o bem público? E aonde se poderia isto constituir melhor do que nas mãos daquele, a quem se confiou a execução das leis para o mesmo fim? Portanto, supondo que a regulação dos tempos para a reunião e sessão do legislativo não esteja determinada pela constituição original, ela cai naturalmente nas mãos do executivo, não como um poder arbitrário, dependendo só da sua vontade, mas sim com esta presunção, de que ele o exercerá em todo o tempo unicamente para o bem público, segundo as ocorrências dos tempos e mudança dos negócios o exigirem. Não me pertence indagar neste lugar, se os períodos marcados para o seu ajuntamento, ou se uma liberdade deixada ao Príncipe para convocar o legislativo, ou talvez uma mistura, de ambos estes casos, traz consigo a menor inconveniência; mas somente mostrar, que não obstante o poder executivo poder ter a prerrogativa de convocar e dissolver tais assembleias do legislativo, nem por isso lhe é superior.

As coisas deste mundo estão num fluxo tão constante, que nada permanece no mesmo estado por muito tempo. Assim o povo, riquezas, comércio, poder, mudam a sua condição, florescentes e poderosas cidades vem a arruinar-se, e com o andar do tempo não mostram mais do que sítios abandonados e desolados, no entretanto que outros lugares que não tem sido frequentados se tornam em países populosos, cheios de riqueza e de habitantes. Não mudando porem as coisas sempre igualmente, e muitas vezes o interesse particular conservando costumes e privilégios, tendo já cessado os seus motivos, acontece frequentemente que nos governos, aonde uma parte do legislativo se compõe de representantes eleitos pelo povo, com o andar do tempo esta representação se torna muito desigual e desproporcionada às razões sobre que foi estabelecida no princípio. Os grandes absurdos, que se podem seguir da continuação dum costume, para que já não há razão, facilmente se podem conhecer, quando vemos o simples nome duma cidade, de que não resta nem tanto como as suas próprias ruínas, onde apenas se pode achar mais casas do que um curral, ou mais habitantes do que um pastor, mandar tantos representantes para a grande assembleia dos legisladores, como hum Condado inteiro, cheio de população, e de riquezas 4. Os estrangeiros se admiram disto, e todos devem confessar que necessita de remédio: ainda que muitos julgam difícil o achar-se, porque sendo a constituição do legislativo o acto original e supremo da sociedade, anterior a todas as suas leis positivas, e dependendo inteiramente do povo, nenhum poder interior pode alterá-lo. E por isso o povo, uma vez constituído o poder legislativo, não tendo, num governo tal como este de que temos estado a falar, poder para obrar enquanto o governo existe; esta inconveniência é considerada como incapaz de remédio.

Salus populi suprema lex, é com efeito uma regra tão justa e tão fundamental, que aquele que sinceramente a segue não pode correr risco. Por isso se o executivo que tem o poder de convocar o legislativo, observando antes a verdadeira proporção do que a moda da representação, regula, não pelo costume antigo, amas pela verdadeira razão, o número dos membros, em todos os lugares que tem direito a ser representados distintamente, ao que nenhuma parte do povo, incorporado de qualquer maneira que seja, pode ter pretensões, que não sejam em proporção da assistência que isso dá ao público; isto não se pode considerar como uma instituição dum poder legislativo novo, mas somente como uma restauração do antigo e verdadeiro, e como rectificação das desordens que a sucessão do tempo insensível e inevitavelmente tinha introduzido. Porquanto, sendo o interesse e da intenção do povo, o ter uma representação justa e igual; todo aquele que mais a aproxima a isso, é sem duvida um amigo e fundador do governo, e não pode deixar de ter o consentimento e aprovação da sociedade: pois que a prerrogativa não sendo mais do que um poder constituído nas mãos do Príncipe para ele cuidar no bem público naqueles casos, que dependendo de ocorrências imprevistas e incertas, não podiam ser dirigidos com segurança por leis fixas e inalteráveis: tudo aquilo que se fizer manifestamente para bem do povo, e para o estabelecimento do governo sobre os seus verdadeiros alicerces é, e será sempre, uma prerrogativa justa. O poder de erigir corporações novas, e por conseguinte novos representantes traz consigo a suposição de que com o andar do tempo as medidas de representação podem variar, e venham a ser representados aqueles lugares que dantes não tinham direito a isso; e pela mesma razão, que aqueles que dantes tinham este direito de representação o percam, e deixem de gozar tal privilégio, em consequência da sua decadência. Não é a mudança do estado presente, que talvez a corrupção ou a decadência tenha introduzido, que invade o governo, mas sim a sua tendência a ofender ou a oprimir o povo, e a constituir uma parte ou partido com distinção ou desigual sujeição do resto. Tudo aquilo que se não pode deixar de reconhecer como vantajoso para a sociedade, e para o povo em geral, feito sobre medidas justas e duradouras, sempre se justificará a si mesmo quando feito; e todas as vezes que o povo eleger os seus representantes, regulando-se por medidas justas e iguais, próprias da forma original do governo, não se pode duvidar que é a vontade e acto da sociedade, quem quer que lhe permitiu ou foi a causa de assim fazerem.